Portugal foi de regra um país dependente de factores externos, decidido a procurar fora do território matricial apoios políticos e recursos materiais que habilitassem o Estado a desempenhar as funções e realizar os objectivos do seu conceito estratégico variável em cada época. Logo na fundação procurou o apoio da Santa Sé; desde a primeira dinastía que as relações com os poderes europeus foram objecto de cuidado, e a necessidade de a soberanía ir adquirir os fundos estruturais indispensáveis mudou mais de uma vez de sentido, mas sem afectar a permanência da determinação.
Digamos que a definição jurídica, também variável no tempo, do sistema político foi tendencialmente mais restrita do que o próprio sistema que incluí elementos exteriores à soberanía, específicamente as alianças, das quais a mais duradoira é a inglesa, que no século vinte foi a NATO, para depois de 1974 ser a Europa em formação.
É por outro lado certo que durante séculos o modelo político foi o da cadeia de comando, com o regime monárquico a colocar o Reí no topo de um povo em armas durante toda a longa dinastia da reconquista, depois o povo deitado a longe na dinastia da expansão marítima, com D. João II a amarrar ao leme a mão do marinheiro de Pessoa, para finalmente, com o desastre de Alcácer Quibir, se desagregar a cadeia de comando, e logo o Estado, e finalmente a desamparada sociedade civil. O sebastianismo recorrente, aínda por vezes presente na interpretação existencial do modelo constitucional em que vivemos, guardou a memória dessa cadeia de comando. Em mais de uma crise animou o carisma de interventores eventualmente vistos no modelo do Presidente-Rei, que mais uma vez Pessoa julgou reconhecer em Sidónio, e que talvez fosse a inspiração de Mouzinho quando proclamou que este Reino é obra de soldados, no tempo em que Antero dirigia os olhares para a Europa. É do livro do nosso desassossego que ambos se tenham suicidado.
Assim como a india foi uma deslumbrante origem de fundos estruturais, o esgotamento do modelo encontrou substituto no Brasil das ilusões, e mais tarde, perdida ali a soberanía, no arranque para África depois da Conferência de Berlim de 1885.
"A Revolução de 1974 foi um ponto final no Império Euromundista de que éramos parte por responsabilidade histórica fundadora, mais uma vez os condicionamentos externos foram determinantes, mais uma vez foi necessário reequilibrar o sistema político nacional com uma amarra externa, a qual foi a nova Europa sem qualquer outra escolha".
A permanência deste conceito estratégico, de conteúdo variável, e com invariável dependência de factores externos, teve numa diplomacia de excelência um instrumento fundamental, e no apego da nossa diáspora às raízes um suplemento do amor pátrio e de remessas das poupanças. A Revolução de 1974 foi um ponto final no Império Euromundista de que éramos parte por responsabilidade histórica fundadora, mais uma vez os condicionamentos externos foram determinantes, mais uma vez foi necessário reequilibrar o sistema político nacional com uma amarra externa, a qual foi a nova Europa sem qualquer outra escolha. Por leitura apressada, um alto responsável político anunciou por então as novas caravelas portadoras dos fundos estruturais europeus, sem reparar em que nestas não estava qualquer contribuição dos pinhais de D. Diniz, e amarrados os críticos ao Velho do Réstelo, com o equívoco de não reconhecer no personagem o primeiro dos europeístas, contrário como foi à decisão de deitar o país a longe.
A severa crise com que entramos no terceiro milénio, esgotado o conceito estratégico nacional secular, também parece finalmente despertar a compreensão de que a conjuntura é radicalmente nova em relação à experiência secular, que as exigências dirigidas à capacidade do Estado ameaçam colocá-lo na categoria de Estado exíguo, quer na definição em progresso das hierarquias internas da Europa, quer na hierarquia da Europa nas balanças de poderes mundiais, balança estratégica, balança científica e técnica, balança económica. Assim como o Império Euromundista teve o seu ponto final, assim como o conceito histórico português esgotou com a derrocada daquele, assim agora o desafio europeu é colectivo, a recuperação da Europa dos desastres das suas guerras civis depende reconhecidamente de solidariedades funcionais das várias soberanias. E por isso Portugal está estruturalmente envolvido no processo europeu, e inscrito na Europa que ela, ainda com definição incerta, está envolvida no turbilhão do globalismo que colocou todas as áreas culturais do mundo a intervir no processo com independência política.
É uma novidade estar Portugal envolvido na primeira linha das contradições do processo interno europeu, com a evidência de que, por experiência passada, é a capacidade diplomática que exige reforço e criatividade para estar nos centros de decisão, e não ser apenas destinatário dos efeitos das decisões em que não participa. É pela participação respeitada nessa gestão do interesse comum europeu que pode conseguir apoio à reserva de um espaço de liberdade para agir em favor do vasto património de presenças que espalhou pelo mundo.
Para responder à exigência de reinvenção de um conceito estratégico nacional renovado, é prioritária a meditação sobre as capacidades reais do Estado, e sobre a coerência da sua relação com a comunidade nacional.
Nesta rede de exigências, acontece que muitas referências históricas estão ultrapassadas: a fronteira geográfica é hoje simples apontamento administrativo vista a livre circulação europeia; a fronteira de segurança é a da NATO; a fronteira económica é a da União; a livre circulação de pessoas e o descontrolo das migrações reconstituem uma composição populacional que recorda a época em que os Reis de Portugal eram os Reis das três Religiões, com todas as dificuldades inerentes; a cidadania desdobra-se em fidelidades múltiplas, que se especificam na fidelidade ao Estado português, na fidelidade à Europa em formação, e na fidelidade aos interesses comuns da Humanidade, fidelidades nem sempre fáceis de relacionar coerentemente: é uma exigência do novo conceito estratégico nacional a formular procederá racionalização do pluralismo cultural que regressou às nossas problemáticas do futuro, e assegurar a coerência das fidelidades múltiplas desafiantes.
Não é possível assegurar o desenvolvimento destas traves mestras sem que uma vontade cívica consistente assuma a responsabilidade da escolha e crítica das decisões políticas envolvidas, e sem que esteja assegurado que o Estado não sofre do fenómeno de redundância que mais de uma vez se verificou ao longo da história.
"A severa crise com que entramos no terceiro milénio, esgotado o conceito estratégico nacional secular, também parece finalmente despertar a compreensão de que a conjuntura é radicalmente nova em relação à experiência secular, que as exigências dirigidas à capacidade do Estado ameaçam colocá-lo na categoria de Estado exíguo, quer na definição em progresso das hierarquias internas da Europa, quer na hierarquia da Europa nas balanças de poderes mundiais, balança estratégica, balança científica e técnica, balança económica".
Infelizmente, o pessimismo frequenta excessivas vezes as nossas circunstâncias de desafio, e nesta data multiplicam -se os textos de desânimo em relação ao povo que somos, por vezes em relação ao povo que fomos. Reeditam-se as Conferências do Casino, volta a circular o alarme de João de Andrade Corvo (Perigos: Portugal na Europa e no Mundo, 1870), onde escreveu estas palavras: “é grave a situação de Portugal. Confusão e incoerência nos princípios, grande desordem nas finanças; enfraquecimento deplorável da autoridade; falta de confiança na vitalidade do país, e nas suas faculdades políticas e económicas; um desalento injustificável atrás do qual se esconde um perigoso indiferentismo…”. Leia-se o de novo publicado trabalho de Augusto Fuschini, O Presente e o Futuro de Portugal (1899), onde se encontram considerações semelhantes. Ou o desâ nimo de Eça de Queiroz (O Francesismo) quando escreveu: “porque nós somos realmente o povo que se compraz em estar quieto entre os choupais, a ver correr as águas meigas, pensando em coisas saudosas. Fomos à índia, é verdade, mas quase três séculos são passados, e ainda estamos descansando, derreados, desse violento esforço a que nos obrigaram alguns aventureiros que tinham pouco do fundo comum da nossa raça…”. Tudo traduz o mesmo estado de espírito, que tarda em reconhecer que alguma frequente necessidade, não assumida, de avaliar em cada conjuntura a relação entre o Estado, a época, a sociedade civil, e o tempo perspectivável, caracteriza a história política portuguesa, e desperta esta angústia. Uma angústia que parece por vezes imaginar que a definição do Estado, e da sua relação com o povo e a conjuntura, diz respeito a elementos invariáveis na sua história. Ora aquilo que não parece fundado é desfiar uma teoria intimista de pontos fracos da memória de existir do povo, evitando o doloroso realismo de confrontar o Estado com a situação exógena que o globalismo acentuou, para o redefinir com lucidez em termos de eliminar a recuperada actualidade das palavras de Andrade Corvo. Em resumo, como doutrina um renovado Fukuyama (State-Building, 2005), reconstruíra relação entre a população e o Estado, a partir de uma consciência cívica assumida das reais capacidades e da direcção a seguir na conjuntura nova, por vezes imprevista, de regra apenas conhecida pelo conjunto de efeitos colaterais que a definem, e não foram antecipados.
Sugerimos que a vinculação à nova forma de ser Europa é um projecto para a nova época posterior ao colapso do Império Euromundista, mas não é um envolvimento português sem precedentes nas passadas formas de a Europa se entender a si própria. Este facto desafiante e imperativo exige agora a presença de Portugal em todos os centros de decisão, para não ser apenas o destinatário delas. Tendo porém sempre presente a experiência da sua valiosíssima história nacional, porque o esquecimento dela, e do que ensina, facilita que o passado mais sombrio subitamente bata com estrondo à porta do futuro, destroçando projectos e ilusões. Por exemplo, não pode continuar a verificar-se a prática da política furtiva europeia, que caracteriza muitos dos passos dados, com total falta de participação da opinião pública informada e dos Parlamentos nacionais. Não é recomendável que o alargamento europeu se faça, como se tem feito, sem estudos e discussão assumida sobre a questão da governabilidade; não é da prudência governativa que o alargamento das fronteiras se faça sem estudos e discussão assumida sobre a garantia de obter uma fronteira de países amigos: os pequenos paí ses são os mais interessados em que o diálogo europeu seja reestruturado, e essa é apenas uma das muitas razões que exigem a lembrada revalorização da vertente diplomática.
A definição dos espaços em que tal intervenção necessariamente vai decorrer tem uma exigência de opção que diz respeito ao conflito crescente entre o americanismo e o europeísmo, com referências simplificadoras que vinculam os EUA a Marte e os europeus a Vénus. Passando por alto os erros do unilateralismo americano, e o despropósito de alguma pontual arrogância de europeus, as novas ameaças globais, sobretudo a partir do 11 de Março, aconselham todos, e sobretudo os pequenos países, entre estes aqueles que pela história dos ocidentais e pela geografia estão na frente atlântica, a intervir para impedir que se reproduza agora nesse mar a desastrada experiência europeia de os Estados não terem vizinhos, mas sim inimigos íntimos. Para Portugal, a solidariedade atlântica coloca-o na centralidade dos interesses ocidentais, enquanto que a ruptura agrava o risco do agravamento da condição periférica, que já nos inquieta.
Temos por suficientemente experimentado que aquela perspectiva da articulação a Marte e a Vénus estimula irracionalismos unilateralistas, como se passa com o anúncio francês de um novo conceito de utilização das armas estratégicas, no passado tidas para não serem usadas mas sim para assegurar conten ção recíproca dos Blocos, agora anunciadas para serem ameaçadoramente usadas na defesa de interesses próprios, designadamente energéticos.
"Portugal fez uma longa caminhada de séculos, certamente com pontos fracos e pontos fortes na avaliação feita em cada nova conjuntura, mas o quefica de permanente no património da Humanidade são as emergências em que se inscreve a criação de novos países, entre os quais se destaca o Brasil, a contribuição para quefinalmente chegássemos a uma Declaração Universal dos Direitos Humanos, a marca no direito internacional sobrevivente às catástrofes militares, a doação da língua ao diálogo de milhões de seres humanos, a inscrição de valores inovadores no património de áreas culturais por onde passaram ou a soberania ou a evangelização, e a mundialização das interdependências que desafiam agora as intervenções da globalização emprogresso. Na génese dos pontos fortes e dos pontos fracos dessa globalização estão a intervenção e a responsabilidade portuguesas".
Nesta perspectiva de solidariedade atlântica se articula a manutenção de uma janela de liberdade governativa e soberana, para desenvolver a política que recebeu forma na CPLP. É uma vertente que envolve articulação da segurança do Atlântico Norte com a segurança do Atlântico Sul, reconhece a importância dos Arquipélagos Portugueses, e também de Cabo Verde, que ajuda a renovar e modernizar a solidariedade do Brasil, que presta ao globalismo o serviço da solidariedade horizontal dos povos de língua portuguesa. E valoriza também a solidariedade das comunidades espalhadas pelo mundo, as quais, ainda que não falando a língua, não esquecem as raízes e os laços com um Portugal que por ali passou no exercício da soberania, ou na função de pregar a todas as criaturas, ou simplesmente instalando a diáspora que é uma dimensão estruturante da presença de Portugal no mundo.
Esta estrutura multifacetada implica que, se a competição económica é hoje uma frente europeia e por isso também específicamente portuguesa, a dimensão cultural vai acentuadamente para além do espaço europeu e ocidental, com uma dimensão de liberdade que se destaca dos deveres de cooperação dentro dos Tratados da União, da NATO, e da ONU, com destaque para a cooperação militar que se desenvolveu com êxito no antigo Ultramar.
"Trata-se de um desafio agudo, agravado pela longa falta de regulação a que se entregou o Estado português, o qual despertou finalmente na data em que uma crise financeira com pouco precedente alarga o risco de o fazer evoluir para Estado exí guo. Trata-se de um risco que afecta quer o desempenho no espaço europeu e ocidental, quer na área de liberdade que outras antigas soberanias coloniais europeias ciosamente guardam, com relevo para a França, a Inglaterra, a Bélgica, e a Holanda".
Daqui resulta a evidência de que, quer na frente interna europeia e ocidental, quer na referida frente de liberdade, o objectivo da qualificação, o ensino e a investigação, exigem uma mobilização prioritária. Talvez não seja difícil reconhecer que as chamadas Declaração de Lisboa e Declaração de Bolonha se conjugam para exigir políticas que tendem para o modelo das políticas dos Estados unitários, e que as redes, embora contratualizadas, ganham uma autonomia sisté mica que constrange a liberdade residual dos Estados. É por isso que, ao mesmo tempo que o objectivo de obter uma competitividade que exceda a dos EUA arrisca afectar a solidariedade atlântica, também a hierarquização qualitativa das universidades do espaço europeu e ocidental ameaça impor a situação periférica às instituições dos pequenos paí ses, abrindo novos Caminhos de Santiago para sedes pouco numerosas num centro activo.
Trata-se de um desafio agudo, agravado pela longa falta de regulação a que se entregou o Estado português, o qual despertou finalmente na data em que uma crise financeira com pouco precedente alarga o risco de o fazer evoluir para Estado exíguo. Trata-se de um risco que afecta quer o desempenho no espaço europeu e ocidental, quer na citada área de liberdade que outras antigas soberanias coloniais europeias ciosamente guardam, com relevo para a França, a Inglaterra, a Bélgica, e a Holanda.
"…não pode continuar a verificar-se a prática da política furtiva europeia, que caracteriza muitos dos passos dados, com totalfalta de participa ção da opinião pública informada e dos Parlamentos nacionais".
Pareceu-nos que as políticas de contenção não podem atingir esta frente fundamental com critérios que ameaçam a mercadorização do ensino, o enfraquecimento da investigação fundamental, a menorização das ciências sociais em relação com o espaço definido principalmente pela língua. A língua que, pela expansão, já não é nossa, é também nossa. Tão exigente identificação e coordenação de interesses aponta para que as despesas com a investigação, o ensino, e a promoção da área cultural, sejam consideradas despesas de soberania, salvaguardadas da teologia de mercado que anda a contribuir para relativizar os valores ocidentais, europeus e portugueses.
Portugal fez uma longa caminhada de séculos, certamente com pontos fracos e pontos fortes na avaliação feita em cada nova conjuntura, mas o que fica de permanente no património da Humanidade são as emergências em que se inscreve a criação de novos países, entre os quais se destaca o Brasil, a contribuição para que finalmente chegássemos a uma Declaração Universal dos Direitos Humanos, a marca no direito internacional sobrevivente às catástrofes militares, a doação da língua ao diálogo de milhões de seres humanos, a inscrição de valores inovadores no património de áreas culturais por onde passaram ou a soberania ou a evangelização, e a mundialização das interdependências que desafiam agora as intervenções da globalização em progresso. Na gé nese dos pontos fortes e dos pontos fracos dessa globalização estão a intervenção e a responsabilidade portuguesas. Não podemos ignorar o dever de continuarmos participantes nas respostas, desenvolvendo o esforço indispensável para que essa participação seja mundialmente válida e reconhecida. Começando por dar notícia de que o património humano ocidental, europeu, e mundial, que se trata de preservar e dinamizar, não é nosso. Mas também é nosso.
Professor Emérito da Universidade Técnica de Lisboa
Presidente da Academia das Ciências de Lisboa
Membro n.° 1 e ex-presidente do Conselho Supremo da SHIP