"…o Brasil, que recebia, desde a 1.a metade do século, dezenas de milhares de imigrantes todos os anos - as estatísticas mostram que mais de 3 milhões de portugueses, desde a Independência de 1822, desembarcaram no país - passou a ter uma posição inversa a ponto dos emigrantes que retornavam à terra de origem serem em maior número do que os novos que chegavam".
A partir da segunda metade do século passado começou um novo ciclo da emigração portuguesa. O Brasil, que desde sempre tinha sido o país de destino dessa emigra ção, deixou de o ser e foi saindo, pouco a pouco, do imaginário dos portugueses que tencionavam realizar seus projectos de vida em terra alheia. A Europa, e principalmente a França, tornou-se o grande pólo de atração dos trabalhadores das provincias menos desenvolvidas de Portugal. Era gente que não conseguia emprego, ou, se o tinha, ganhava salários de fome, em cenários de pobreza. Quando não, eram jovens que, para fugir do serviço militar e da guerra colonial, tinham um motivo a mais para sair do país “a salto”.
Por outro lado, as próprias condições económicas e sociais do Brasil, com a concentração, na periferia das grandes cidades, de milhares de retirantes dos Estados do norte e do nordeste, flagelados pela seca e pela miséria; o achatamento dos salários da classe trabalhadora; as crises cambiais e a desvalorização progressiva da moeda; o aprofundamento das desigualdades de renda; o próprio processo de industrialização e outras causas faziam com que cada vez se tornassem mais difíceis as condições para quem, vindo de fora, queria vencer num país que, noutras épocas, e de modo especial para os portugueses, mostrava-se com a aura sedutora de um “el dorado”.
Tudo isso era consequência de novas realidades. À Europa era mais fácil de chegar, cruzando fronteiras por caminhos clandestinos, ou pelas vias da ilegalidade. Não se precisava fazer dívidas para a compra da passagem de navio, nem ficar nas filas de embarque da Junta da Emigração, suportar a ausência, por muitos anos, até poder de novo rever a família e visitar a terra de berço, como acontecia com os que migravam para o outro lado do Atlântico. Acima dos Pirenéus, tudo ficava mais perto, os salários eram mais compensadores, as moedas eram mais fortes, o emprego não faltava, o agregado familiar mantinha-se, não havia ausências compridas de anos, a mulher também se empregava para acrescer os ganhos, a legislação trabalhista e as reformas laborais eram mais favoráveis e, todos os anos, nas férias, vinha-se à terra para curtir as saudades, as economias no banco cresciam, construíam-se casas nas aldeias do Minho, das Beiras ou de Trás-os-Montes, realizavam-se os sonhos de quase todos. Quando não era a Europa, eram os Estados Unidos, 0 Canadá, a própria Venezuela, ou a África do Sul e até a Austrália, a Rodésia ou o Congo, que passaram a ser opções preferenciais para a emigração portuguesa. E o Brasil, que recebia, desde a 1.a metade do século XIX, dezenas de milhares de imigrantes todos os anos – as estatísticas mostram que mais de 3 milhões de portugueses, desde a Independência de 1822, desembarcaram no país – passou a ter uma posição inversa a ponto dos emigrantes que retornavam à terra de origem serem em maior número do que os novos que chegavam.
Apesar disso, durante duas ou três décadas, e por ser imenso o “estoque” da emigração portuguesa, as consequências desse processo não foram de imediato tão visíveis, nem tão sentidas como estão sendo agora principalmente naquelas cidades onde a “colónia” tinha uma maior expressão. Poderíamos dar exemplo no quadrante do comércio, tanto no atacado como no varejo, na construção civil ou no mobiliário, setores em que os portugueses ocuparam, tradicionalmente, uma posição importante. Ou, se quisermos outro exemplo, encontrá-lo-emos no universo associativo, que se tornou, em todo o Brasil, um admirável “ex-libris” da Pátria e que passou, em anos recentes, por mutações profundas tanto no formato, como no funcionamento, precisamente porque lhe faltava cada vez mais o “combustível humano”, ou seja, faltavam-lhe portugueses que, chegados ao país de destino, entravam para os quadros das associa ções, levados por seus conterrâneos e conhecidos. Com a revolução de “25 de Abril”, 0 Brasil recebeu milhares de empresários e de técnicos portugueses que saíram do país, ou foram obrigados a abandonar as antigas colónias da África, em função das turbulências políticas provocadas pela mudança do regime. Nos primeiros tempos pensava -se que o fenómeno iria influir bastante no seio da comunidade portuguesa no Brasil. Já não era o emigrante de outros tempos que desembarcava no cais do porto, de mala às costas, e roupa remendada, para começar uma vida cheia de desafios e uma ascensão social difícil; eram grandes e médios empresários, administradores, médicos, professores universitários, engenheiros, profissionais de alto nível que, naturalmente, traziam experiências vividas e uma outra visão do mundo. Não demorou muito, entretanto, para se dar conta de que pelas circunstâncias traumáticas que tinham provocado a vinda desses novos emigrantes e também porque a situação de Portugal, depois dos redemoinhos e da agitação política dos anos 70, foi-se normalizando, que a comunidade portuguesa do Brasil não iria poder contar com eles. E, na verdade, antes mesmo de terminar a década, com a normalidade constitucional, o afastamento dos elementos mais radicais do processo revolucionário e com a vitória nas urnas da “Aliança Democrá tica”, constituída por partidos políticos moderados, a grande maioria dos que tinham vindo após o “25 de Abril” começou a regressar ao país. E, com o retorno, ficou apenas, outra vez, o “estoque” dos emigrantes antigos que, com o passar dos anos, foi-se reduzindo cada vez mais. Apesar das tentativas feitas, não se obteve grande êxito em induzir esses novos emigrantes a entrar nas associações luso-brasileiras, principalmente naquelas de natureza cultural, como os Gabinetes de Leitura, os Liceus, os centros de estudos, onde poderiam dar um contributo importante, seja por força da sua formação superior, seja pelo nível intelectual e profissional que a grande maioria deles possuía. E até se compreende que as dificuldades tenham surgido. Primeiro, porque esses portugueses chegavam em uma situação quase sempre dramática, tinham deixado para trás as suas empresas, as suas casas, as suas cátedras, os seus escritórios, o seu emprego, o seu negócio, tudo, enfim, que tinham construído, e, de uma hora para a outra, viram-se obrigados a começar uma vida nova: arranjar casa para morar, colégio para os filhos, trabalho para sobreviver e com essas preocupações diárias é evidente que ninguém poderia pensar na participação num clube, em frequentar uma biblioteca, ou em fazer palestras num liceu. E quando, mais tarde, a situação começava a normalizar-se, veio a hipótese e a opção do regresso a Portugal.
A conclusão que se tira e com a qual temos de lidar é esta: existe uma comunidade portuguesa que está em vias de desaparecer dentro dos próximos 20 anos. Se excluirmos os registos de nacionalidade adquirida por filhos de portugueses (e essa aquisição em grande parte dos casos é feita com a finalidade de se obter um passaporte da União Europeia para poder circular na Europa e entrar mais facilmente nos Estados Unidos da América e não como prova de afeto pela Pátria dos progenitores) já devem ser menos de 200.000 os portugueses de origem que vivem hoje no país. Numa população de 183 milhões esse número é insignificante, principalmente se nos lembrarmos que no final do século XIX a população portuguesa no Rio Janeiro chegou a ser 10% da população carioca e em Santos, algumas décadas depois, ultrapassava os 40% de habitantes da cidade. Desses 200.000 portugueses, dois terços devem ter uma estimativa de vida de mais 10 ou 15 anos, isso porque a média de idade, hoje, gira em torno dos 60 anos. Isto significa dizer que ao redor do ano de 2020, não existirá mais uma comunidade portuguesa no Brasil. Observa-se, desde logo, que se excluirmos os Estados do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Pernambuco e de Minas Gerais, onde ainda vivem alguns milhares, noutros Estados o número de portugueses já se conta por poucas centenas.
"Com a revolução de '25 de Abril', o Brasil recebeu milhares de empresários e de técnicos portugueses que saíram do país, ou foram obrigados a abandonar as antigas colónias de África, em função das turbulências políticas provocadas pela mudança do regime".
De qualquer forma, é oportuno registrar que esse fluxo da emigração do pós-25 de Abril teve um mérito: contribuiu para mudar no Brasil a imagem do país. De repente, sob o impacto da queda do antigo regime político, os brasileiros aperceberam-se de que existia um outro Portugal, bem diferente daquele que imaginavam, e que era carregado de estereótipos contra a antiga metrópole e maltratado pelas deformações do passado, um Portugal que já nada tinha a ver com a figura tosca e rude do emigrante que trabalhava nos armazéns do subúrbio ou nas feiras das cidades. Mais tarde, ao correr dos anos 90, por força da entrada de capitais portugueses em vários setores da economia brasileira – nas telecomunicações, na eletricidade, no turismo, na banca, na hotelaria e nalgumas indústrias – também se pensou que com o fluxo dos investimentos viriam técnicos e gestores das empresas e com eles um reforço para a comunidade portuguesa no Brasil. Tudo não passou de uma expectativa pois o que se deu foi o aproveitamento de quadros nacionais, o que até se compreende, e os poucos portugueses que vieram em fun ção desses investimentos quase sempre estão ligados a contratos de trabalho a prazo fixo e não se interessaram muito pelos valores e pelos patrimónios coletivos que enriquecem a nossa presença no Brasil.
A conclusão que se tira e com a qual temos de lidar é esta: existe uma comunidade portuguesa que está em vias de desaparecer dentro dos próximos 20 anos. Se excluirmos os registos de nacionalidade adquirida por filhos de portugueses (e essa aquisição em grande parte dos casos é feita com a finalidade de se obter um passaporte da União Europeia para poder circular na Europa e entrar mais facilmente nos Estados Unidos da América e não como prova de afeto pela Pátria dos progenitores) já devem ser menos de 200.000 os portugueses de origem que vivem hoje no país. Numa população de 183 milhões esse número é insignificante, principalmente se nos lembrarmos que no final do século XIX a população portuguesa no Rio Janeiro chegou a ser 10% da população carioca e em Santos, algumas décadas depois, ultrapassava os 40% de habitantes da cidade. Desses 200.000 portugueses, dois terços devem ter uma estimativa de vida de mais 10 ou 15 anos, isso porque a média de idade, hoje, gira em torno dos 60 anos. Isto significa dizer que ao redor do ano de 2020, não existirá mais uma comunidade portuguesa no Brasil. Observa-se, desde logo, que se excluirmos os Estados do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Pernambuco e de Minas Gerais, onde ainda vivem alguns milhares, noutros Estados o número de portugueses já se conta por poucas centenas.
"Cometeremos um equívoco se pensarmos que podemos construir, em bases sólidas e duradouras, uma comunidade luso-brasileira assente exclusivamente no estatuto da dupla nacionalidade"
Desses 200.000 portugueses, dois terços devem ter uma estimativa de vida de mais 10 ou 15 anos, isso porque a média de idade, hoje, gira em torno dos 60 anos. Isto significa dizer que ao redor do ano de 2020, não existirá mais uma comunidade portuguesa no Brasil. Observa-se, desde logo, que se excluirmos os Estados do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Pernambuco e de Minas Gerais, onde ainda vivem alguns milhares, noutros Estados o número de portugueses já se conta por poucas centenas.
Não obstante essa realidade demográfica e o fato dos ponteiros trabalharem em direcção contrária – o Brasil a aproximar-se dos 200 milhões de habitantes e a população portuguesa que vive no país a extinguir-se – o certo é que existe uma comunidade alargada constituída também por luso-descendentes e brasileiros ligados de uma forma ou de outra a Portugal. E essa comunidade é herdeira, não do “país das lágrimas”, mas de uma cultura e de uma História de que os portugueses foram os principais protagonistas. Como escreve Eduardo Lourenço, temos lares que se extinguiram deste lado do Atlântico, mas que renasceram, mais belos, no Brasil.
É nessa comunidade que devemos apostar para não deixar o Brasil afastar-se cada vez mais de Portugal. Sem querer ¡mpor-lhe, pela descendência, ou pelos cânones do passado, uma espécie de obrigação de cultuar o Portugal meu avozinho, ou a velha matriz lusitana, temos de a levar a reconhecer, por sua própria vontade, a singularidade e a magia da herança deixada pelos portugueses. E fazer com que essa comunidade, com devoção e com gosto, queira e procure enriquecer patrimónios e afinidades, traçar linhas de convergência, promover futuros de entrelaçamento e amizade.
"… a autêntica comunidade, aquela que vislumbramos como um desafio do presente, está muito além do passaporte ou do ingresso de capitais, das metáforas ou dos discursos, para ser uma realidade abrangente e plural - na língua, na cultura, na política, na história, na economia, na arte e no destino".
Cometeremos um equívoco se pensarmos que podemos construir, em bases sólidas e duradouras, uma comunidade luso-brasileira assente exclusivamente no estatuto da dupla nacionalidade. Não serão alguns milhares de filhos de portugueses portadores do passaporte comunitário (e que são movidos quase sempre por outros objetivos que não o de se ligar ao espaço sentimental da lusofonia, conforme já dissemos) que irão dar corpo à comunidade. Nem podemos pensar que alguns investimentos recíprocos, que ganharam importância nos últimos anos, irão servir de embasamento para essa comunidade. Os capitais saem, ou mudam de mãos, com muita volatilidade e na hora em que se forem, num toque da globalização, de novo ficaremos reduzidos, em termos de relações económicas, ao comércio bilateral das sobremesas das saudades. Também não se pense que uma comunidade sólida e dinâmica se mantém apenas com o pronunciamento dos políticos, ou com as boas intenções dos diplomatas. Tudo isso – direitos de cidadania, troca de investimentos, vontade política dos governos e ação das chancelarias – são referências e dados estruturantes da comunidade. Dão-lhe conteúdo em vários setores. Tiram-na da inércia. No entanto, a autêntica comunidade, aquela que vislumbramos como um desafio do presente, está muito além do passaporte ou do ingresso de capitais, das metáforas ou dos discursos, para ser uma realidade abrangente e plural – na língua, na cultura, na política, na história, na economia, na arte e no destino. O fundo há-de ser espontâneo, vindo como vem das raízes e do sangue, mas os contornos hão-de ser definidos pelo imaginário, dos dois povos. Será isso o superlativo da utopia? Talvez seja. Mas entre o sonho e a realidade o certo é que queremos os dois: o sonho para antecipar a realidade e esta para cumprir o sonho.
Já passámos, no Brasil, por duas fases distintas. Tivemos uma, em que a leitura era feita em torno de apologias e de miragens, de encontros e de sintonias; e tivemos outra, marcada pelos antagonismos e ressentimentos, pelo antiportuguesismo e pela obsessão de esquecer o “tempo português”. A comunidade em que queremos apostar nem é aquela que se mantém da retórica dos governos e das construções exclusivamente sentimentais e utópicas, nem é, tampouco, aquela outra, traçada pela sombra e pelo jacobinismo, que só serve para contrariar e reduzir qualquer projeto de aproximação dos dois países.
Num mundo globalizado, em que os países interagem, sobretudo, em função de interesses políticos, económicos e financeiros, nem sempre é fácil potenciar uma comunidade que tem como lastro permanente a Língua comum, a História entrelaçada, a convivência de pessoa, a partilha do passado e a aproximação de gens e “pattems” culturais. As novas gerações, muitas vezes, levadas por outras realidades e por outras condicionantes, não se dão conta do percurso e da construção que as antecedem. E também, muitas vezes, os desafios são maiores do que as nossas próprias forças. Quando pensamos, por exemplo, nos meios que tem Portugal para manter uma presença viva no Brasil, do Amazonas ao Rio Grande do Sul – uma presença da sua cultura, da sua História, da sua imagem, dos seus patrimónios – certamente que não podemos repousar essa tarefa na ação de um órgão do Estado, no intercâmbio e uma Universidade ou nos projetos de uma organização. Precisamos de criar mecanismos que sejam capazes de ter um efeito multiplicador e permanente – e entre esses mecanismos a escola, certamente, desempenha um papel importante e decisivo. A comunidade luso-brasileira só terá a dimensão do nosso sonho quando fluir com naturalidade, da alma dos brasileiros e portugueses.
Presidente do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro e
da Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras do Brasil
Delegado da SHIP