A Invenção da Glória. D. Afonso V e as Tapeçarias de Pastrana

Tapeçarias de Pastrana. Tapeçarias de Pastrana.
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O sugestivo título com que o Museu Nacional de Arte Antiga acolheu as celebradas tapeçarias, em monumental exposição, trouxe consigo um debate antigo dos historiadores portugueses e estrangeiros sobre as mesmas. Pensamos que, no essencial, a polémica gerada se pode acolher ao subtítulo que ora nos propomos tratar, embora de forma breve e sem o aparato académico que a divulgação autoriza excusar.

Assim sendo, comecemos pelas certezas, a acreditar no apotegma de que no meio é que está a virtude, atentos ao significado das mesmas para a exaltação duma glória que, consumada a tomada de Arzila, se impunha evidenciar na visão dos outros.

Sepultado o infante real D. Fernando havia que lavar a honra em terras magrebinas, mas desta feita, assegurando uma vitória. Contratado um vultuoso empréstimo pela coroa e arregimentada a vontade da nobreza, homens e navios partiram à conquista.

Na verdade, Arzila veio a cair no Sábado, 24 de Agosto de 1471, dia de S. Bartolomeu, e com ela Tânger entregou-se. Toda a Cristandade rejubilou, mormente a Corte da Borgonha e a Santa Sé. A duquesa D. Isabel, tia paterna de D. Afonso V, viu na gloriosa jornada o princípio do ataque frontal ao avanço do ideal do Império Turco, logo encomendando ao cronista Jean de Wavrin uma Relação do feliz episódio. Sisto IV, eleito a 9 de Agosto daquele ano e entronizado, justamente, a 25 imediato, emitira, a 21 do mesmo mês, a bula Clara devotionis, elogiando, aprioristicamente, os serviços que o rei português ia prestando à Igreja. Naquele Domingo, 25 de Agosto, cantava missa solene o arcebispo de Lisboa, D. Jorge da Costa, naquela que fora a mesquita de Arzila, então transformada em igreja da invocação de S. Bartolomeu.

Não nos deteremos nos sucessivos acontecimentos da Guerra Peninsular de 1475-1479, muito embora possamos ter presente, por geral aceitação, que na batalha de Toro, de 2 de Março de 1476, as forças comandadas pelo monarca português claudicaram frente às de Isabel de Castela enquanto as de seu filho, o príncipe D. João, triunfaram sobre as de Fernando de Aragão. Tão-só a presença dos efectivos do cardeal Mendoza e do seu irmão mais velho, o 1.º duque do Infantado, permitiram salvar do desaire os Castelhanos.

Sabemos ainda que Joana, «a Beltraneja», entre nós conhecida por «Excelente Senhora», que vira usurpado o trono por Isabel, era sobrinha de D. Afonso V, filha duma irmã deste, a princesa D. Joana, que Henrique IV de Castela havia tomado em segundas núpcias. A anulação do primeiro casamento, por não consumado, tinha lançado a dúvida da paternidade, antes atribuída ao valido do monarca castelhano, D. Beltrán de la Cueva, duque de Albuquerque e conde de Ledesma.

A desditosa princesa ficara custodiada por Iñigo López de Mendoza y Figueroa, conde de Tendilla, 2.º filho do famoso marquês de Santillana, e irmão dos já citados Mendozas. Por se manter partidário das pretensões ao trono da jovem, Tendilla não fora sequer a Toro. A custódia, por parte desta família da alta nobreza castelhana, radicava muito no facto do futuro cardeal ter havido na portuguesa D. Mécia de Lemos, aia que fora da mãe da infortunada «Beltraneja», dois filhos. Também ele, a princípio, tomara o seu partido, mas mudara, mais tarde, ao ver confirmar-lhe Isabel, «a Católica», a qualidade de Primaz de Espanha, em 1473.

Impõe-se agora um pouco mais de genealogia, precisamente, a do famoso cardeal D. Pedro González de Mendoza. Da já aludida relação com D. Mécia nasceu D. Diego de Mendoza (1470-1536), também ele futuro cardeal e conde de Melito. Este último, fazendo jus à tradição familiar, para além duma filha, teve Diego Hurtado de Mendoza, mais tarde vice-rei do Perú, Príncipe de Melito e de Francavila. Consorciou-se este com D Catalina de Sylva, irmã do conde de Cifuentes, nascendo do casal uma única filha e rica herdeira, D. Ana de Mendoza y La Cerda, que se distinguiu por uma rara beleza, a par de uma viva inteligência.

O português Rui Gomes da Silva, 2.º filho de Francisco da Silva, 3.º Senhor da Chamusca e de Ulme, e de D. Maria de Meneses e Noronha, acompanhara seu avô materno, Rui Teles de Meneses, mordomo-mór da infanta D. Isabel, como bem sabemos, filha de D. Manuel I, quando esta passara a Espanha para desposar Carlos I, o conhecido imperador Carlos V. Por lá ficara, servindo de pagem, com a idade de 11 anos, na Casa Real. A amizade com Felipe II, de quem se tornou fiel companheiro, viria a guindá-lo aos mais altos cargos, tornando-se mesmo um reconhecido valido. A sua vida e feitos alongar-nos-ia por espaço de que não dispomos e pouco interessariam para o tema em assunto. Retenhamos, contudo, que o monarca para ele preparou um casamento à altura, precisamente, com D. Ana de Mendoza y La Cerda, constituindo-se, por sucessivas elevações na Grandeza de Espanha, condes de Melito e Extremeña, 1.ºs marqueses e 1.ºs duques de Pastrana e príncipes de Eboli. Tiveram dez filhos.

Pormenor de uma Tapeçaria de Pastrana
Pormenor de uma Tapeçaria de Pastrana

Em 1569, chamaram a Pastrana Santa Teresa de Jesus, e debaixo da sua influência fundaram dois conventos – um, de S. José, para religiosas, e o de S. Pedro, para homens, hoje conhecido por del Carmen. Assim nasceu a Colegiada de Pastrana. Rodrigo Diaz de Vivar y Mendoza, o 4.º duque de Pastrana, nasceu em 1614 e foi mordomo-mór de Carlos II de Espanha. Casou-se, em 1630, numa boda entre primos-irmãos, com D. Catalina Gómez de Mendoza y Sandoval, que por morte de seu irmão, em 1657, se constituiu sua herdeira, como 8.ª duquesa do Infantado. O filho mais velho deste casal, Gregorio Maria de Sylva y Mendoza, 5.º duque de Pastrana, por morte de seu pai, tornou-se o 9.º duque do Infantado ao falecer sua mãe, unificando-se as duas Casas. Ao falecer, em 1667, D. Gregorio legou em testamento à Colegiada de Pastrana as famosas tapeçarias, o que nos leva a concluir serem elas pertença daquela Família, ao tempo. E atingimos uma primeira certeza. Avancemos, brevemente, para outras, não todas, mas para as que podem fazer apontar algumas hipóteses, deixando de fora, desde já, o facto de D. João II ter havido em D. Ana Hurtado de Mendoza, aia da «Excelente Senhora», ao bastardo D. Jorge de Lencastre, futuro duque de Coimbra, grão-mestre das Ordens de Avis e Santiago, pai do 1.º marquês de Torres Novas e 1.º duque de Aveiro.

D. Leonor de Áustria, ou de Habsburgo, filha primogénita de Joana, «a Louca», e de Filipe I de Habsburgo, «o Belo», irmã do imperador Carlos V, Carlos I de Espanha, foi a terceira mulher de D. Manuel I, havendo deste a famosa infanta D. Maria. Depois de viúva do monarca português, passou a segundas núpcias com o rei de França, Francisco I, de quem também enviuvou, tendo regressado a Espanha. O 4.º duque do Infantado, Iñigo López de Mendoza y Pimentel, casado com D. Isabel de Aragão, sobrinha de Fernando, «o Católico», deixou, temporariamente, em 1557, o seu palácio de Guadalajara a D. Leonor, que nele passou a residir. Filipe II, sobrinho paterno da augusta personalidade, desditosamente viúva pela segunda vez, atribuiu-lhe o título de Senhora de Guadalajara, querendo, por certo, demonstrar-lhe uma superior deferência de se sentir Senhora da terra que escolhera para acabar seus dias. Sabemos como a sua herdeira universal foi a sua única filha, a infanta D. Maria de Portugal. Sabemos, porém, contudo, também, que o mobiliário que consigo viajara, e o que da herança de seus pais em Espanha recebera, o tinha, em vida, doado à então duquesa do Infantado, a já referida D. Isabel de Aragão.

Um outro apontamento, que um registo paroquial castelhano parece evidenciar, prende-se ao facto de se ter ficado a dever ao cardeal Mendoza o acolhimento em igrejas, dos efectivos portugueses no regresso de Toro. Tudo indica que não perseguidos pelas triunfantes forças vitoriosas, mas antes acossados por populares das aldeias que haviam pilhado na ida, e agora se vingavam no regresso, depois do desaire.

Por outro lado, temos conhecimento de como D. Afonso V seria apreciador de panos de armar, tal é o caso das tapeçarias, por trazer ao seu serviço um Martim Esteves, “que fas panos de armar”, com a significativa tença anual de 6 000 reais, metade da que fora atribuída ao pintor Nuno Gonçalves, que pinta, a partir de 1471, “nas obras da cidade”. A verdade histórica manda que se registe ainda, no séc. XV, a presença de artífices mouriscos de grande capacidade, neste ofício, a par de inúmeros portugueses. E, posto isto, passemos às dúvidas.

Em primeiro lugar importa sabermos quem encomendou as tapeçarias, de seguida onde teriam sido realizadas, e daqui por diante nos enlearemos nas hipóteses. Nada sabemos sobre a primeira questão, mas duas hipóteses se nos colocam – pelo próprio rei, ou por sua tia, a já citada infanta D. Isabel, duquesa da Borgonha. E, quanto à origem, ou entre nós, ou, mais provavelmente, por um dos dois, em encomenda à Oficina de Pasquier Grenier, seguidora das tradições das oficinas de Arras – cidade que o próprio rei português conhecerá por ocasião da sua viagem a França, entre 1476-1477. A sua composição, derivada dos cânones pictóricos luso-flamengos de finais do séc. XV, consubstancia assim a válida filiação que José de Figueiredo, em 1926, delas fez, na Escola do autor dos não menos famosos Painéis de São Vicente, comummente atribuídos a Nuno Gonçalves, como adverte em biografia recente do «Africano», Saúl António Gomes.

E passamos a concluir. Se cá foram confeccionadas, por cá teriam ficado, mais ou menos tempo. Se o foram no estrangeiro, teriam, ou não, chegado alguma vez a Portugal. E as hipóteses multiplicam-se, a saber:

  1. Teriam sido oferecidas pelo próprio D. Afonso V ao cardeal Mendoza, como reconhecimento pela sua compaixão misericordiosa, pós batalha de Toro. Opinião defendida por Afonso de Dornelas. Ou teriam constituído saque!
  2. Teriam passado a Espanha, por oferta pessoal de Filipe II, enquanto Filipe I de Portugal, a Rui Gomes da Silva, 1.º duque de Pastrana. Opinião defendida por Joaquim Veríssimo Serrão;
  3. Teria sido Filipe, «o Belo», a trazê-las para Espanha ficando a pertencer aos bens da Casa Real, ou constituindo-se como herança de sua filha D. Leonor de Áustria. No primeiro caso seguiria entroncada a hipótese de Filipe II a doá-las a Rui Gomes da Silva, enquanto no segundo entroncaria na versão da doação de D. Leonor a D. Isabel de Aragão, duquesa do Infantado;
  4. Teria sido o duque de Alba que, ao regressar do seu governo da Flandres, as traria para oferecer a Filipe II. E este, por sua vez, as ofertaria ao 1.º duque de Pastrana. Sabendo, como sabemos, a rivalidade entre o duque de Alba e o duque de Pastrana, constituindo mesmo na Corte partidos antagonistas, não nos parece razoável tal hipótese.

Pensamos ter deixado patente quanto há ainda, mormente nos arquivos nacionais, nos espanhóis, nos franceses e nos relativos ao ducado da Borgonha, para investigar. A nós Portugueses fica-nos a certeza de que a vitória da conquista de Arzila e de Tânger, bem como de Alcácer Ceguer não poderiam deixar de perfigurar um motivo bastante para a glória de D. Afonso V, que judiciosamente foi cognominado de «o Africano».

João Abel da Fonseca
João Abel da Fonseca

Presidente do Conselho Superior do Instituto de Cultura Europeia e Atlântica,
sócio da SHIP
Académico da Academia Portuguesa da História e da Academia de Marinha