“Ao longo de cerca de dois mil anos a Europafoi, como sabemos, território de confrontos violentos, de invasões, ocupa ções e resistências. Com fronteiras violadas e cidades destruídas. Lealdades traídas, soberanias contestadas. Afirmações de poder manifestadas pela arrogância e a força”
Quando aderimos à então Comunidade Económica Europeia, em 1985, o processo tinha mais de 30 anos. As ideias e as políticas relativas à sua formação e o significado do caminho percorrido, como excepcional elemento de cooperação e de paz na Europa, merecem ser recordadas porque ajudam a situar os acontecimentos no seu enquadramento histórico e podem contribuir para melhor compreender os desafios do presente quando a aceleração da história e as transformações ocorridas no mundo e na Europa acabaram por alterar objectivos iniciais ou introduzir diferentes ponderações e juízos em relação ao seu futuro.
Ao longo de cerca de dois mil anos a Europa foi, como sabemos, território de confrontos violentos, de invasões, ocupações e resistências. Com fronteiras violadas e cidades destruídas. Lealdades traídas, soberanias contestadas. Afirmações de poder manifestadas pela arrogância e a força. E no entanto a Europa durante esse período foi sendo também o território em que se criou e moldou a civilização ocidental, património cultural partilhado pelos povos que a habitaram e habitam, com as suas catedrais, mosteiros e universidades, as suas obras de arte em todos os domínios, da pintura á literatura, da música à escultura ou aos mais actuais conceitos da vida em sociedade.
Uma Europa onde os povos, distantes que estivessem uns dos outros, souberam apurar formas subtis de idêntica sensibilidade, de respeito por valores comuns, de gosto e admiração pelo mesmo tipo de atitudes, em termos éticos ou estéticos.
Esta trágica contradição parecia caracterizar o destino do continente, constantemente dividido entre a paz e a guerra, o bem e o mal, entre o culto da beleza, a procura de respostas na ciência ou na arte para satisfazer a curiosidade e as inquietações da alma humana e as suas piores perversidades, a maldade, a crueldade e a barbárie.
Assim chegámos ao século XX quando essa contradição atinge dimensão sem precedentes. George Steiner constata: “entre Agosto de 1914 e Maio de 1945, de Madrid ao Volga, do círculo árctico à Sicília, calcula-se que cem milhões de homens, mulheres e crianças tenham perecido devido à guerra, à fome, à deportação e à chacina étnica”. Tinha a Europa chegado ao limite da autodestruição. Com justeza se qualificavam essas guerras de “civis” pelo seu carácter fratricida. As sequelas desta situação não se ficavam pelas cidades arrasadas e os países destroçados. Como uma espécie de contágio, se haviam espalhado, sobretudo entre as na ções europeias que haviam participado nesses conflitos, sentimentos de ódio de umas em rela ção às outras e que prevaleciam entre vencidos e vencedores, exaltado o sentido nacional, sublimada a noção de soberania. Quem, nessa altura, imaginaria construir, a partir dessas ruínas, políticas de entendimento, aliança, cooperação visando criar em paz desenvolvimento e progresso?
E foi, no entanto, o que aconteceu. Mas não por obra ou influência de movimentos ou forças clássicas das sociedades democráticas. Não foi o resultado da acção colectiva de meios político-partidários, de sindicatos, de órgãos de informação ou da mobilização da opinião pública, esta última aliás, curiosamente, em larga medida alheia das realidades europeias que se foram criando ao longo dos tempos, situação que mantém actualidade. Foi na origem o resultado do pensamento e da acção de um homem, Monnet, e de elites dirigentes, sem consultas ou debates públicos que antecedessem a decisão e lhe dessem contorno democrático. O momento histórico explica, em certa medida, o recurso a este processo. A rejeição da Comunidade Europeia de Defesa veio demonstrar a influência que esse momento histó rico exercia na opinião pública. No Parlamento francês, deputados gaulistas e comunistas juntaram-se para votar contra a simples ideia de uma Comunidade desse tipo.
Monnet ao querer evitar o regresso ao que essas guerras tinham representado, teve consciência de que se impunha encontrar um modelo original de convívio na Europa, que iniciasse novo capítulo da História do continente, em função de uma responsável visão do futuro. E intuiu que seria necessário convencer parceiros e aliados, combatentes da véspera, da bondade de posições políticas e económicas que acabassem por ser partilhadas e vividas pelos países europeus saídos daquela última confrontação. E ainda que para atingir esse fim precisava de começar pelo mais difícil, a menos previsível das alianças, a que teria de alicerçar-se entre franceses e alemães. Salvar, recriando-a, a civilização europeia, fazendo prevalecer o respeito pela dignidade alheia como princípio da dignidade própria. Valorizar o que de melhor, ao longo dos séculos, formara também a Europa, tão associada à cultura, e, na diversidade e variedade da riqueza desse património, assentar as bases de uma paz duradoura essencial para o progresso colectivo. E, nesse contexto, consolidar a democracia com o que ela deva significar de salvaguarda e garantia de direitos e liberdades e um sistema económico aberto aos seus múltiplos desafios no comércio como na indústria.
Tarefa a desafiar a imaginação até porque parecia pôr em causa valores pelos quais se tinham sacrificado gerações, a soberania, as fronteiras, os recursos naturais. Existia naturalmente, e cumpre salientá-lo também, um contexto polí tico geral em que prevalecia a convicção de que era necessário criar condições que viessem a evitar novos conflitos e, nesse sentido, a aproximar os povos do continente europeu.
Em termos de segurança colectiva o Pacto do Atlântico, assinado em 1949, com os Estados Unidos e o Canadá, ilustrava já a preocupação que suscitava a ameaça do expansionismo soviético, depois do golpe de Praga e do bloqueio de Berlim e da notícia da explosão da primeira bomba ató mica na URSS. O receio de todos os totalitarismos, como lembra Adriano Moreira, estava no espírito dos povos e dos seus dirigentes. Uma ameaça que havia levado Churchill a aludir à criação dos Estados Unidos da Europa e a mencionar a cortina de ferro elevada ali onde chegavam, no centro da Europa, os exércitos da União Soviética. Essa aliança, a OTAN, vai a durar e a constituir um travão àquele expansionismo. Depois do fim da URSS, é nos nossos dias que essa aliança é posta em causa. Porque o principal adversário desaparecia mas ainda por se tornarem demasiado claras, e preocupantes, as divisões internas, designadamente na participação ou não de acções de combate no Afeganistão. Mas já não pareciam tão sólidas, as instituições nascidas na mesma altura, no domínio económico, a Organização Europeia de Cooperação Económica, em 1948 e, ainda em 1949, em termos políticos, o Conselho da Europa. Não se propunham construir um projecto de integração europeia e revelavam antes, na forma como se desenrolaram os primeiros trabalhos, a vontade de defesa de posições nacionais.
“E no entanto a Europa durante esse período foi sendo também o território em que se criou e moldou a civilização ocidental, património cultural partilhado pelos povos que a habitaram e habitam, com as suas catedrais, mosteiros e universidades, as suas obras de arte em todos os domínios, da pintura à literatura, da música à escultura ou aos mais actuais conceitos da vida em sociedade”.
Monnet soube dar outro sentido político a este continente onde “as distâncias têm uma escala humana”, como diz Steiner. Tinha uma visão das coisas que o afastava de conceitos nacionalistas que considerava também responsáveis pela situação a que se chegara. Trabalhara fora do seu país, antes e depois da guerra ora com americanos, ora com ingleses, mas também na Europa de Leste e na China. E não se identificava, na França do final da guerra, com as posi ções do General de Gaulle, sempre contrário a soluções de supra nacionalidade. Vale a pena lembrar o que De Gaulle disse a propósito da ideia da criação de uma Comunidade Europeia de Defesa: “uma abdicação nacional; uma fraude; um monstro artificial; um robot; um Frankenstein a que, para enganar o mundo, chamam Comunidade”.
Monnet procurava dar solução aos problemas com que via a Europa enfrentar-se e só nesse sentido, mais amplo, situava o seu próprio país. Pressentia a necessidade da reconciliação entre vencedores e vencidos sabendo que a grande e inquieta pergunta da altura, inspirada num fantasma de Hitler, era “o que fazer com a Alemanha”.
“Os visionários que haviam pensado a Europa há cerca de cinco décadas não podiam imaginar a situação actual. Nesse curto intervalo de tempo o contexto geopolítico, como sabemos, alterou-se, a história foi sujeita a uma dramática aceleração, a globalização criou diferentes interdependências de interesses, surgiram novos actores na cena internacional, empresas multinacionais, países emergentes, religiões e culturas, assumindo vertiginosa influência nos assuntos mundiais. E multiplicaram-se as ameaças do terrorismo, algumas dentro do próprio espaço europeu”
Considerava que a resposta a essa pergunta só prevaleceria se tivesse dimensão europeia, isto é se incluísse a Alemanha na solução desejável, valorizando com a França, e logo a seguir com a Itália e o Benelux, nessa fase primeira, interesses que lhes eram comuns e teriam de ser geridos em conjunto por instrumentos a que fossem dando consistência. Para o fazer imaginou instituições que queria democráticas e lançou nesse sentido ideias, sugestões, propostas que com o tempo foram tomando forma e a garantir um constante diálogo entre os Estados-membros para ir ao encontro de decisões que seriam consensuais. A Comissão, talvez o mais original e poderoso instrumento impulsionador da constru ção europeia, o Parlamento Europeu, com os seus membros eleitos e o constante aumento dos seus poderes e a institucionalização do Conselho Europeu, serviram para consolidar o projecto inicialmente concebido por Monnet. Tinha consciência da complexidade dos desafios e por isso sustentava a cautela com que se devia agir ao ir transferindo, paulatinamente e sempre de comum acordo, as parcelas de soberania que fossem alicerçando e dando identidade própria à comunidade a criar. Era uma política que exigia prudência e determinação no respeito pela democracia, os direitos do homem e a economia de mercado. Embora afectasse, em certas áreas, a competência dos Estados, para a transferir para instituições europeias, não punha em causa a identidade de cada Estado, das suas tradições históricas ou culturais e designadamente das suas políticas externas. Promo
vida com pragmatismo e de forma convincente, essa política foi ganhando responsáveis europeus, à esquerda, nos meios socialistas ou próximos destes, de antemão ganhos para posições pró-europeias e antinacionalistas, no centro direita, junto dos democratas cristãos e seus aliados, conscientes da necessidade de que a Europa deveria unir-se para ter peso, influência e capacidade de intervenção no mundo. Foi pois sendo possível encontrar, entre os Estados-membros como refere Adriano Moreira, “aquela linha que representava a média entre o desejável e o possível,” mas uma linha que acabaria por alterar, em termos revolucionários, o contexto clássico que até então era o da relação política desses Estados entre si. E isso também terá sido possível porque as ideias relativas à construção europeia encontraram eco em interlocutores de qualidade, que se terão apercebido da grandeza da tarefa e dos aspectos inovadores que continha, como Schuman, em França e Adenauer na Alemanha ou, como observaria com cínica lucidez o americano Brezinski, porque esse processo permitia à França uma certa forma de reincarnação e à Alemanha uma certa forma de redenção.
Estendendo a mão à Alemanha que no decurso de numerosas gerações tanto a França tivera de combater, Schuman propôs estabelecer entre os dois países a famosa “solidariedade de facto”, aberta a outras nações livres e na altura em relação a um objectivo decisivo: a produção franco-alemã do carvão e do aço dirigida por uma Alta Autoridade comum, embrião da ideia da Comissão, constituída por “personalidades independentes designadas sob uma base paritária pelos respectivos governos… sendo as suas decisões executórias”. O primeiro grande passo numa visão de supranacionalidade estava dado. Schuman aludiria ainda com prudência “a um certo abandono de soberania, uma fusão ou gestão em comum de poderes exercidos pelos governos.., para ultrapassar os egoísmos nacionais, os antagonismos e as estreitezas que matam”.
“Enfrenta a União Europeia, mais uma vez, questões de fundo. Na urgência de dar novas respostas aos desafios da modernidade, dos alargamentos e da mudança são questões que ultrapassam de longe a visão dos pioneiros da construção europeia”.
Na altura parecia urgente dar respostas económicas e sociais às questões que se colocavam à Europa. Não se punha, nos anos que se seguiram à guerra, intenções de domínio ou de predomínio de uns Estados em relação a outros ou de referências ao poder militar. A noção da igualdade formal dos Estados era repetidamente afirmada e constituía um dos grandes méritos do que se pretendia conceber. Essa institui ção assumiria dimensão política, depois da queda do muro de Berlim e da desagregação do império soviético, quando os Estados -membros em 1991, em Maastricht (apenas com reservas por parte do Reino Unido), reconheceram a necessidade de formar uma união política, paralelamente à sua dimensão económica e financeira. A qualidade intelectual e política do Presidente da Comissão, Jacques Delors, e a sua visão da Europa, contribuíram para consolidar um período de paz, de coopera ção e de desenvolvimento sem precedentes na Europa e sucessivamente atraindo a esse processo mais nações do continente. Embora tendo sempre que vencer posições inicialmente divergentes relacionadas com o exercício ou a partilha do poder, o peso e a influência dos Estados, do Conselho, do Parlamento ou nas atribuições de responsabilidades na Comissão, é certo que os obstáculos foram sendo ultrapassados em soluções acordadas. E assim se passou de 6 para 9 membros e mais tarde para 10, para 12 – quando Portugal aderiu, sábia decisão que a descolonização impunha mas que, na altura, nem sempre foi compreendida – e mais tarde para 15 e, sobretudo a partir do fim da União Soviética e da reunificação da Alemanha, para 27, numa perspectiva de alargamentos para os quais não se vislumbra fim, embora a lógica tenha a prazo que a impor à própria União. Enquanto se iam assimilando esses alargamentos – que pressupunham reformas institucionais – sem deixar de robustecer o processo integrador, enriquecido em termos politicamente federalistas, pela criação da moeda única e por iniciativas como Schengen, tinha a UE de acompanhar as mudanças profundas que alteravam ou baralhavam as suas antigas referências internacionais. Os visionários que haviam pensado a Europa há cerca de cinco décadas não podiam imaginar a situação actual.
Nesse curto intervalo de tempo o contexto geopolítico, como sabemos, alterou-se, a história foi sujeita a uma dramática aceleração, a globalização criou diferentes interdependências de interesses, surgiram novos actores na cena internacional, empresas multinacionais, países emergentes, religiões e culturas, assumindo vertiginosa influência nos assuntos mundiais. E multiplicaram-se as ameaças do terrorismo, algumas dentro do próprio espaço europeu. A vitória na guerra fria não garantia ao Ocidente hegemonia internacional sendo antes necessário enfrentar, com novas ideias e novas orientações, uma mais rica e complexa realidade mundial e rever o papel que nessa realidade, sujeita a constante mobilidade, podia ou devia caber a uma Europa que se queria adequada à mudança.
Assim o foram tentando fazer os Estados-membros ao longo dos anos em Maastricht, em Amesterdão, em Nice e em Lisboa considerando prioritária a reforma institucional imposta pelos alargamentos e a necessidade de dar eficácia às decisões da União. Por entre claros progressos no domí nio da integração e dos seus sempre sensíveis equilíbrios, outros factores tiveram carácter negativo como aconteceu quando se rompeu o conceito da igualdade formal dos Estados que em Nice, com a introdução do elemento demográfico e discriminatório, na ponderação de votos para as votações por maioria qualificada, suscitou intervenções de rara agressividade, designadamente por parte da Presidência francesa. A notícia dos confrontos verbais naquele Conselho Europeu, com intervenções que terão justamente feito valer a ausência de igualdade entre os Estados-membros, revelou afinal a permanência de egoísmos, ingenuidades ou ambições nacionais que se podiam julgar afastadas embora algum espírito de equilíbrio tenha acabado por moderar em parte o texto finalmente aprovado em Nice. Mas mais polémico do que o Tratado de Nice seria o projecto de Constituição europeia rejeitado por referendo em França -55% e na Holanda -62%. A tendência federalista que se revia no texto constitucional fôra rejeitada embora, a meu ver, não a ideia da UE.
Não obstante as posições tantas vezes diferentes, ou mesmo opostas em relação à situação internacional, ou ao que se pretenderia levar a cabo no plano da UE, e com que método e em função de que modelo, ou talvez por isso mesmo, o processo de integração europeia, em termos de cooperação europeia e de desenvolvimento económico e social, não creio que estivesse em causa. Os governos, os parlamentos, as universidades, os meios de informação, e nessa medida as opiniões públicas, puderam acompanhar e em diferentes Estados-membros pronunciar-se sem comprometer ou entender dever ser revisto o que foi sendo realizado, se pretendia preservar e parecia suficiente, em termos de esperança e de ambição, para manter vivo o esforço integrador. E isto, mesmo havendo entre os mais lúcidos, a consciência de que, como toda obra humana, a UE também é perecível.
A partir da rejeição do texto da Constituição, no entanto, não era o passado que estava em causa mas antes o futuro.
A solução encontrada com o Tratado de Lisboa, muito próxima da Constituição, não será em princípio objecto de referendo pelos Estados-membros, com a excepção da Irlanda, onde ali se impõe o recurso a esse instrumento. Mas a percepção, em largos meios da opinião pública europeia, foi de considerar polémica uma decisão, aparentemente acordada por uma maioria de Governos, de não aceitar esse recurso, não só porque retira democraticidade ao processo, como porque se parece situar numa lógica de exclusão dos cidadãos europeus e de receio de reviver resultados negativos como os ocorridos aquando dos referendos à Constituição. É naturalmente muito cedo para avaliar até que ponto o Tratado de Lisboa responde aos desafios que se colocam à Europa. Desde logo em relação a futuros alargamentos, aos seus limites geográficos, políticos e eventualmente culturais e penso na Turquia, país membro da NATO e que representa um Islão moderado a que o Ocidente devia estender a mão e valorizar. Mas também penso na declaração unilateral de independência do Kosovo e nas suas consequências nos Balcãs, sabendo que essa realidade divide a União, pode suscitar reacções graves na Sérvia e na Rússia, e ainda alimentar reivindicações da mesma natureza, embora em graus diferentes, na Bélgica, na Escócia, na Irlanda do Norte, na Córsega, em Chipre, na Catalunha, no País Basco.
A experiência dirá também, por outro lado, se as soluções encontradas, para o exercício do poder na União, não criam afinal desequilíbrios e tensões entre Estados-membros, que a demografia pode hierarquizar em três grupos, com visões diferentes da defesa dos seus interesses, da sua representatividade na Comissão ou na sua capacidade de influenciar a negociação permanente que decorre nas suas instâncias. A experiência também esclarecerá como irão decorrer as relações entre o Presidente da Comissão e o Presidente do Conselho Europeu, eleito pelo próprio Conselho por maioria qualificada e com funções classicamente atribuídas às presidências rotativas, mas com poderes pouco definidos e meios de acção orçamentais ainda menos definidos. O Presidente da Comissão já o terá admitido quando disse ao jornal belga De Standaard: “o novo Tratado tem grandes riscos… com o Presidente do Conselho… poderá haver um novo circuito de decisões tomadas ao lado da Comissão e do Parlamento Europeu”.
Haverá ainda que definir, e trata-se de outro ponto igualmente sensível, as responsabilidades do Alto Representante para a Política Externa e a Diplomacia que será a sua, partindo do princípio que essa diplomacia possa existir a 27 ou mais países, uma diplomacia a que ainda falta expressão militar, e que se pretende venha a sobrepor-se à dos Estados -membros nas relações internacionais por exemplo com aRússia, a China, a índia, o Brasil ou o mundo árabe, e se afirme nas organizações internacionais como as Nações Unidas e o Conselho de Segurança. Aceitando-se portanto, nessa perspectiva, que a Alemanha, a Inglaterra, a França, a Polónia, e Portugal, a Holanda, a Grécia, a Hungria e os demais Estados-membros tenham posições comuns, ou que essa diplomacia, por falta de acordo entre esses Estados- -membros, revele as divisões existentes na União. Nas declarações que lhe foram atribuídas ao jornal belga De Standaard a que fiz alusão, o Presidente da Comissão também reconheceu que haveria “um risco real de que os Governos resolvam os seus problemas entre si e de uma forma intergovernamental e sem ter em conta as restantes instituições”.Este tipo de situações e as interrogações que suscita, terão levado uma personalidade de prestígio, como Hubert Vé drine, antigo Ministro dos Estrangeiros da França, a não hesitar em sugerir, em obra recente e com o sugestivo título de “Continuer l’Histoire”, a devolução aos Estados de certas responsabilidades atribuídas á União assim voltando a responsabilizar os governos nacionais em políticas que digam respeito à própria União, acrescentando: “deixando o caminho livremente aberto a políticas comuns, a cooperações reforçadas, de geometria variável, mas sem abandono de soberania”.
Enfrenta pois a União Europeia, mais uma vez, questões de fundo. Na urgência de dar novas respostas aos desafios da modernidade, dos alargamentos e da mudança são questões que ultrapassam de longe a visão dos pioneiros da construção europeia. Confiemos, mais uma vez também, que os Governos e as instituições europeias se encarreguem, no contexto do Tratado de Lisboa ou fora dele, com sabedoria e maturidade e tendo em consideração necessários conceitos de conciliação e compromisso, de dar continuidade ao projecto europeu limando ambições de integração que o possam comprometer.
Embaixador em Washington, Brasília, Madrid e Paris
Ex-secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros