Colóquio “Infante, o Navegador do Futuro”
Comunicação da Dr.ª Teresa Coelho
Organização da Sociedade Histórica da Independência de Portugal
Casa do Infante
4 de Março de 2022
No dia 4 de Março de 2022 em que se assinalaram os 628 anos do aniversário de nascimento do Infante D. Henrique, a Sociedade Histórica da Independência de Portugal, instituição antiga, histórica e prestigiada organizou uma feliz iniciativa num espaço emblemático do Porto (a Casa do Infante), tão importante na cidade (foi-o e ainda o é) e que consideramos desempenhar um papel ímpar na divulgação da cultura portuense e até mesmo da história nacional. O local escolhido não poderia, de facto, ser outro se quisermos atender à antiga tradição de que o infante D. Henrique, uma das figuras mais conhecidas da nossa história, teria nele nascido. Não há dúvidas de que um dos momentos mais marcantes da vida de um ser humano é precisamente o do seu nascimento e que muitas vezes os locais que vêm nascer grandes vultos e personalidades revelam algum orgulho nesse acontecimento e uma ligação a estas figuras. Em Portugal existem alguns casos, que não apenas o do infante D. Henrique. No entanto, nesse dia evocámos este príncipe e começámos por compreender as suas ligações ao velho burgo portuense, local do seu nascimento, plasmadas sobretudo em dois momentos da sua vida: o referido nascimento e o seu envolvimento na preparação da expedição para Ceuta.
Nessa longínqua Quarta-Feira de Cinzas de 4 de Março de 1394, a rainha D. Filipa de Lencastre dava à luz mais um filho, no Porto. El-rei D. João I tornava-se pai de mais um infante, desta vez baptizado com o nome de Henrique. Vinha este juntar-se aos pequenos irmãos, os infantes Afonso, Duarte e Pedro. Nasceriam ainda Isabel, João e Fernando, os restantes irmãos a quem Camões chamou, n’Os Lusíadas, de Ínclita Geração, altos infantes. Os nomes atribuídos aos filhos de D. João I respeitaram as tradições portuguesas e inglesas e se o primeiro varão deste rei foi chamado de Afonso, relembrando os antigos monarcas portugueses, Henrique recebe este nome em memória dos seus antepassados ingleses da família materna, os Plantagenetas1 – nessa altura a casa real reinante em Inglaterra. Esta ascendência pode ter imbuído o infante daquele que viria a ser o seu espírito de cavalaria e a ânsia e o desejo de se destacar militarmente e enquanto cavaleiro ao ter consciência da fama de alguns dos seus antepassados ingleses, pela bravura que várias vezes mostrou nas conquistas marroquinas, onde viria a participar ao longo da sua vida. O quinto filho destes monarcas nascia, como vimos, numa época de alguma turbulência política, muito sentida na Europa de então, e bastante nos reinos peninsulares. A nova dinastia de Avis debatia-se ainda com alguns problemas de legitimação; não nos esqueçamos da crise de 1383-85 e que o mestre de Avis, pai de D. Henrique, era um filho natural de D. Pedro I e, portanto, filho ilegítimo do rei. Assim o novo monarca enfrentava algumas ameaças nomeadamente a falta de reconhecimento político em algumas zonas do norte de Portugal, nos primeiros anos do seu reinado, contando com o Porto, cidade que sempre o apoiara, para um indispensável suporte para as suas campanhas militares nesses territórios nortenhos2, uma vez que praticamente toda esta zona do reino tomara o partido de D. Beatriz e de Juan I de Castela. Sendo quase a única cidade a norte que o apoia o monarca visita-a pela primeira vez, em 1385, para através dela iniciar uma dura campanha militar para norte. D. João I devia, por isso, muito ao Porto e a cidade também a ele deve bastante. Sem dúvida que as relações entre o 1º rei da nossa 2º dinastia e o burgo portuense eram de grande proximidade e de apoio, ou não fosse D. João I o rei a resolver a velha questão do senhorio episcopal da cidade, à qual vai pôr um termo, já em 1406 – quando o Porto se torna cidade régia. E não fosse igualmente o Porto a enviar uma esquadra de apoio ao ainda mestre de Avis quando este se encontrava cercado em Lisboa pelos castelhanos, em 1384. A logística e as circunstâncias políticas a que nos estamos a referir, bem como outras que se podem acrescentar ao complexo momento político que caracteriza os primeiros anos do reinado de D. João I, motivariam também o casamento do recém rei com a inglesa Filipa de Lencastre, na cidade do Porto, em 1387, como forma de firmar a aliança celebrada com Inglaterra no ano anterior e através do Tratado de Windsor. Ainda que se saiba da constante itinerância das cortes de então (os vários filhos de D. João I nasceram em locais distintos), poderemos referir que esta estreita e fecunda relação com a cidade do Porto levaria provavelmente ao nascimento de D. Henrique na cidade, no decorrer da década de 1390, por o rei nela passar longas temporadas e por, neste ano, a rainha ter ido ao encalço do marido que se encontrava na cidade. Ainda que seja quase certo referir que o infante nasceu no Porto (Fernão Lopes escreve, na Crónica de D. João I, que D. Henrique nasceu no Porto, sabemos também que a rainha se dirigiu para a cidade já em finais de tempo de gestação e dispomos de um interessante documento que atesta uma lista de pagamentos e de despesas aquando das celebrações do baptizado do infante, algo que terá acontecido certamente logo depois do seu nascimento no Porto; para além da referência de que os sinos tocaram um pouco por toda a cidade para anunciar o seu nascimento). Quanto ao local do parto, esses dados já não são tão claros. Ainda que a antiga e longa tradição diga que foi na alfândega medieval régia portuense, não existem quaisquer provas documentais que tal atestem. Apesar de ser o local mais provável pelas suas instalações e aposentos confortáveis e centrais, devem equacionar-se as hipóteses de poder ter ocorrido nos conventos de S. Francisco, S. Domingos ou mesmo até no paço episcopal. Nestes sítios já estes reis tinham ficado instalados nas circunstâncias do seu casamento, sobretudo no paço episcopal onde terão passado a sua noite de núpcias. Enquanto não contraíram matrimónio e, como era usual, o futuro casal de monarcas estava separado: o que ficou estipulado foi que D. João I permanecesse em S. Francisco e D. Filipa no paço episcopal. Não devemos, no entanto, omitir o facto da antiga alfândega ser do rei (fora D. Afonso IV que a mandara erguer, em 1325, e acrescente-se numa afronta ao bispo da cidade) e que numa parte desse complexo vivia um importante oficial régio, o almoxarife da cidade, argumento que pode ajudar a sustentar a tese de que o filho do rei aí pudesse ter nascido. Com certeza que teria boas e confortáveis acomodações para que a rainha pudesse dar à luz mais um infante, sabendo o casal régio que sempre se encontraria em casa. Encontramo-nos, portanto, em antiga propriedade régia, desde o século XIV, ainda que este edifício pouco tenha do seu aspecto original de remotos tempos medievos. Alfândega régia, onde depois seria também instalada a Casa da Moeda já nos tempos de D. Fernando, que trouxe ainda mais notoriedade ao Porto e a esta zona baixa da cidade. Este controverso edifício era constituído por duas torres, que hoje já não existem, com um pátio central que as separava e numa delas era a casa do almoxarife (a torre norte), sendo a outra um armazém. Centro mercantil e comercial do Porto dos finais de Idade Média, a Casa do Infante alberga hoje um centro interpretativo sobre o infante D. Henrique e o seu tempo e o Arquivo Municipal do Porto. Para terminar este aspecto do muito possível nascimento de D. Henrique na antiga casa do almoxarife régio, acrescente-se que, na ausência de fontes que nos indiquem os dados que procuramos saber, muitas vezes os investigadores podem recorrer a outros exemplos semelhantes. Tal aplica-se neste caso, tendo em conta o precedente do nascimento do infante D. Duarte na casa do almoxarife de Viseu. No Porto pode ter sucedido o mesmo. Acrescente-se que não havia um paço régio na cidade, ao contrário de outras cidades portuguesas, como Lisboa e Coimbra, por exemplo. Permanece e permanecerá este mistério na história da vida do infante e na história da cidade. A cronologia e os acontecimentos que percorremos até aqui mostram-nos como o Porto e as opções da cidade se entrecruzam com o percurso político de D. João I, monarca muito presente na cidade durante estes anos iniciais do seu reinado e que teriam, certamente, sido bem diferentes sem o auxílio com que contou por parte dos portuenses. Anos duros, mas que marcaram a história de ambas as partes envolvidas: a cidade e o mestre que depois foi rei.
Ainda em torno deste ano de 1394 (ou por volta dessa altura), ano do nascimento do infante, fundava-se no burgo uma nova instituição, a Confraria do Corpo Santo, também ela ligada a D. Henrique. Como outras instituições congéneres esta dedicava-se, durante o período medieval, à protecção e assistência de ofícios laborais que se organizavam em forma de confraria, onde predominavam os valores da entreajuda mútua, da defesa e da fraternidade entre aqueles que a ela pertenciam, unidos por esses tais laços laborais. Neste caso, fora esta criada para acolher e salvaguardar mareantes, marinheiros e homens do mar e para os proteger dos perigos que o trabalho no mar poderia trazer. A presença destes trabalhadores remete-nos para uma sociedade portuense muito virada para o mar, para a sua exploração e andanças marítimas que muito caraterizaram a história do Porto, o animado burgo ribeirinho que sempre olhou para o oceano, como fonte das suas riquezas e como destino dos seus negociantes, mercadores e marinheiros. As origens desta confraria trazem consigo algum carácter lendário, sobretudo no que respeita à sua fundação com base no conhecido milagre de S. Telmo (patrono dos marinheiros) e no erguer de primitiva ermida em Massarelos, no lugar da qual hoje temos uma igreja do século XVIII. As suas traseiras, viradas para o rio Douro, ostentam um painel de azulejos com a imagem do infante D. Henrique, remetendo-nos para a lenda e tradição de que o recém-nascido infante, nascido nesse mesmo ano, teria sido o seu primeiro juiz, a pedido e com o desejo dos membros da confraria. Teria sido quase desde nascença uma das figuras principais e honoríficas desta instituição que se destinava a proteger aqueles que andavam a navegar nos mares, dos seus perigos. Não deixa esta tradição de vaticinar aquilo que iria ocorrer na vida do infante D. Henrique, tão marcada pelo seu destino ligado aos oceanos e às navegações. Se quisermos (e pondo de parte as circunstâncias que possam ter ditado que assim se sucedesse), o próprio nascimento no Porto, burgo desde muito cedo virado para uma actividade mercantil assente na exploração de um comércio de matriz marítima e fluvial, parece ter augurado a ligação do infante ao mar e os destinos de Portugal na expansão ultramarina.
Em ligação com este último aspecto, encontraremos o infante uma vez mais ligado ao Porto num segundo momento da sua vida. É em Zurara e na sua Crónica da Tomada de Ceuta que encontramos todas as fases de preparação da expedição que levaria à conquista de praça, no Verão de 1415. Sabemos que as fundações da casa henriquina datam precisamente de pouco anos antes desta conquista e que D. João I preocupado com este assunto, reúne cortes no Alentejo em Évora para obter os meios financeiros necessários à criação e sustentação das casas senhoriais dos seus filhos mais velhos, sobretudo D. Pedro e D. Henrique. Tal assembleia reuniu-se em 14083. No entanto, será só a partir de 1411 que a casa senhorial do infante D. Henrique começará a ganhar forma. Chegados ao ano de 1415, estamos perante um jovem infante, de 21 anos, ansioso por participar numa conquista militar, o que tal não seria de estranhar tendo em conta o espírito cavaleiresco de então e a quem o pai, D. João I, certamente bastante orgulhoso dos filhos, dará parte das responsabilidades na preparação da ida a Ceuta.
Sem dúvida que se tratou de uma operação complexa, que envolveu o reino e os infantes, que pela primeira vez assumiam um protagonismo político nas tarefas e obrigações que lhe tinham delegadas pelo pai, o rei. Na preparação da armada que haveria de zarpar para Ceuta, envolveram-se os infantes D. Pedro e D. Henrique, cabendo a este último reunir esforços, apoios, efectivos, armas, homens e recursos no Porto. Pelo meio da entrega, do compromisso e do entusiasmo, D. Henrique perderia a mãe, a rainha D. Filipa, falecida pouco tempo antes da partida para a praça norte-africana. A causa da morte deveu-se à peste. Ainda que com este episódio de perda, D. Henrique sempre manifestara, desde o início grande entusiasmo com Ceuta, algo que, de resto, manterá durante toda a sua vida no que diz respeito aos ideais de cruzada que sempre genuinamente defendeu e à forma como perpectivava o Norte de África e Marrocos. O protagonismo que assume em todo este processo torna-se assim muito verosímil, tendo em conta as ideias que viria a apresentar e preservar, já passadas décadas sobre a conquista de Ceuta. A sua resiliência e persistência caracterizam a sua forte personalidade no que diz respeito à guerra contra aqueles que julgava serem inimigos da fé cristã. Não poderia haver motivo mais válido, na mente do infante. À crença e fervorosa religiosidade poderíamos ainda acrescentar a pro-actividade, o espírito curioso, e incansável, características da sua personalidade que foi apurando ao longo da vida e que encontramos plasmadas nos ideais que defendeu e em momentos decisivos do seu percurso.
A entrada do Porto, em toda esta conjuntura de Ceuta, relaciona-se com o facto da cidade ter ficado sob ordens do infante no que diz respeito à preparação da expedição. Se a excitação sentida pelo infante nos é notória relativamente à oportunidade de ir a Ceuta e de participar de um grande feito militar, a cidade do Porto soube acompanhar o infante nesse processo. A euforia, a entrega e a alegria com que o burgo seguiu as disposições de D. Henrique são notórias nas linhas que Gomes Eanes de Zurara dedica à preparação da armada no Porto. Chegam a ser profundamente impactantes e impressionantes as palavras do cronista e os episódios que relata, que terão certamente marcado o jovem infante. O infante e os portuenses viviam um momento único e só tal pode explicar que Aires Gonçalves de Figueiredo, como 90 anos na altura, se tenha apresentado a D. Henrique, no Porto, devidamente armado e com homens seus preparados para embarcar para Ceuta. O desfecho marcaria muito D. Henrique que acabaria por convencer o muito idoso homem a permanecer tranquilo no resto dos seus dias. O esforço colectivo da cidade terá sido de tal ordem e de tal entrega que Zurara afirma que aqueles que já tinham morrido desejariam que os seus ossos voltassem a ser vestidos com carne para acompanhar os vivos que estavam a participar e a assistir a tal feito, como foi a conquista de Ceuta4. A esta marcante afirmação, segue-se a descrição da euforia e da animação que se fazia sentir na ribeira portuense aquando destes preparativos; o cronista refere o tráfego constante, e os caminhos cheios de carros de bois e de bestas, e muitos marinheiros e os portuenses que laboravam de dia e de noite para prover e abastecer a frota do infante D. Henrique. Não será de estranhar que uma das hipóteses, mais lendária ainda que com algum fundo de verdade, que explique a origem da designação dos portuenses enquanto tripeiros seja atribuída a este momento que o Porto teria entregado toda a sua melhor carne à armada do infante, restando-lhe apenas as tais vísceras e tripas dos animais. Ainda que sem fundamento histórico, esta tradição ilustra bem a circunstância e a capacidade de resistência e de entrega dos portuenses neste momento, como em outros da sua história.
Na velha ribeira nos encontramos e nela permaneceremos um pouco mais, ainda que em tempos mais contemporâneos para perceber como a cidade e esta zona ainda se encontram ligadas ao infante. Nas proximidades da Casa do Infante, abre-se a Praça do Infante D. Henrique, rasgada no século XIX em antigos terrenos dos conventos de S. Domingos e S. Francisco. A ladear a praça temos outra referência toponímica a D. Henrique, com a presença da rua do Infante D. Henrique, aqui acima da Casa do Infante. Não deixa de ser curioso que esta rua corresponda à antiga Rua Nova mandada abrir por D. João I, nos finais do século XIV. Rua Formosa, como orgulhosamente lhe chamava o rei, pelo seu traçado recto, largo e amplo e por se ter tornado artéria de prestígio para a cidade ainda durante a Idade Média. Tal moderna e larga seria que, durante o Medievo, a chamavam de praça. Por fim, no centro da actual praça infante D. Henrique ergue-se uma estátua do mesmo. Inaugurada em 1900, com a presença dos reis D. Carlos e D. Amélia, D. Henrique apresenta-se a comtemplar o mar, junto de um globo terrestre, que simboliza a expansão e o conhecimento do mundo para o qual também contribuiu. Nesta simbologia aplicam-se bem os versos de Fernando Pessoa quando escreve que o infante tem aos pés o mar novo e as mortas eras/ o único imperador que tem, deveras, /o globo mundo em sua mão. Uma curiosidade acerca desta estátua em bronze é de que o mármore que se encontra na sua base é proveniente de Sagres, local muito ligado ao infante, uma vez que é também conhecido como o infante de Sagres. Seria também Ceuta e todo o seu contexto que daria ao infante o Algarve, uma vez que passaria por esta região pela primeira vez a caminho da praça norte africana. Um bocadinho de Sagres no Porto, portanto, numa lógica de homenagem a duas cidades que desempenharam um papel tão importante na vida do infante, nomeadamente no seu nascimento e na sua morte. O infante nasceu no Porto e morreu no promontório de Sagres.
Tivemos já oportunidade de ir revelando e destacando alguns aspectos mais marcantes da vida do infante e também traços da sua personalidade, uma vez que nos focámos bastante na sua ligação ao Porto de então e de agora. No entanto, e à medida que nos aproximamos do fim da nossa apresentação gostaríamos de mencionar algumas dimensões da sua vida ainda não faladas. Uma delas diz respeito ao infante D. Henrique senhor, outra remete-nos para as suas ligações a Marrocos e à costa ocidental africana, bem como à imagem do cruzado e às construções acerca da sua imagem. Estas são dimensões incontornáveis quando pensamos no infante e delas nos ocuparemos na fase final deste texto.
A dimensão senhorial é importante para se perceber muitas acções e decisões que tomou, nomeadamente pelo acesso a riqueza que lhe foi necessário para as concretizar. O seu património foi constituído ao longo da vida, ou não se tornasse senhor de Lagos já em 1453, apenas sete anos antes da sua morte. Foi detentor do ducado de Viseu (o seu primeiro duque), inaugurando com o infante o D. Pedro, seu irmão, os primeiros ducados em Portugal, em mãos de membros da família real. Foi também senhor da Covilhã, senhor das ilhas atlânticas, governador da Ordem de Cristo, e possuidor de alguns territórios algarvios, como já se viu. Entre os monopólios que controlou e que também lhe pertenciam contam-se as saboarias no continente e ilhas, a tinturaria do pastel, que ele, enquanto empreendedor introduzira em Portugal, bem como o monopólio das pescarias em algumas zonas do Algarve. Pensa-se que nos tempos iniciais do funcionamento da sua casa, os rendimentos só do ducado de Viseu ascenderiam quase a 1 milhão de reais de receita anual5. Imagine-se então o somatório de todos estes domínios para além de Viseu e numa casa senhorial de protegidos, criados, escudeiros, oficiais e pessoal doméstico da dependência do infante, cujo número total terá ascendido a cerca de 900 indivíduos. Uma das grandes fortunas do século XV português, sem dúvida.
Se Viseu ocupou um lugar muito importante na vida de D. Henrique, no núcleo dos seus bens e património, outros espaços mereceram certamente a sua atenção e afeição ao longo dos seus anos de vida: destacamos Tomar e a sua vila, junto a Sagres, para além da importância de Lagos, epicentro das navegações henriquinas. Quanto a Tomar, a sua importância relaciona-se com o facto de ter sido sede da ordem de Cristo, o que lhe valeu uma preocupação com o seu desenvolvimento económico e urbanístico: a existência de feira, a reconstrução do castelo e a construção de paços e de claustros. Foi nestes paços que morreu D. Duarte, em 1438. A sua vila no Algarve, mais um espaço doméstico e íntimo, do que propriamente uma vila, situar-se-ia perto da Raposeira, em Sagres, o que ajudou a dar visibilidade e a engradecer esta região. Por sua vez Sagres encontra-se ligada a um dos grandes mitos da nossa historiografia em torno do infante – a escola de Sagres, na medida em que esta teria existido para formar mareantes e navegadores – espaço de convívio, de busca, de discussão entre marinheiros, homens do mar, cartógrafos que aí cruzavam saberes, experiências e que podiam ajudar no progresso das navegações- assim devemos olhar para ela. O mentor era D. Henrique: um infante genuinamente cruzado, pela forma como defendeu a guerra santa e prossecução das campanhas militares em Marrocos, quase contra todas as opiniões dos seus pares e numa altura em que esse assunto era profundamente debatido na sociedade portuguesa; um infante que desafiou o medo pelo desconhecido e avançou pelas costas da Mauritânia e da Guiné, manteve a sua persistência e obstinação até ao fim dos seus dias, alimentado pela curiosidade, pela fé e pela necessidade e interesses igualmente económicos; um infante visionário, mas plenamente integrado no seu tempo, enquanto senhor que foi e que teve como objectivo a protecção dos seus bens e o fomento e complementaridade a vários níveis do seus territórios; o infante que se manteve incansável quase até ao final do seus dias, nomeadamente nas suas relações com África (acrescente-se que esteve quatro vezes em África, a última apenas dois antes da sua morte: Alcácer Ceguer, 1458); um infante que almejou êxitos com os descobrimentos, mérito enquanto cavaleiro, foi modelo de cristão (pela sua observância e pela castidade que desde muito novo abraçou) e por tudo isto alcançou prestígio internacional que revela o peso político que tinha em Portugal, chegando a pertencer à prestigiante ordem inglesa da Jarreteira; o infante que nos é tão familiar com o chapéu borgonhês e os longos e austeros trajes e que há muito faz parte do imaginário português, mas que no entanto, cujo verdadeiro rosto continua insondável passados quase 600 anos após a sua morte, como tantos outros aspectos da sua personalidade e vida.
Fontes:
– ZURARA, Gomes Eanes – Crónica da Crónica da tomada de Ceuta por el-rei D. João I (ed. Francisco Maria Esteves Pereira). Lisboa: Academia das Sciências de Lisboa, 1915.
Bibliografia:
– MIRANDA, Flávio, SEQUEIRA, Joana, DUARTE, Luís Miguel – História do Porto: A cidade e o Mestre: entre um rei bastardo e um príncipe perfeito. Matosinhos: Quidnovi, 2010, vol. IV.
– OLIVEIRA E COSTA, João Paulo – Henrique o Infante. Lisboa: A esfera dos livros, 2009.
– RUSSELL, Peter – Henrique o Navegador. Lisboa: Livros Horizonte, 2016.
1 RUSSELL, Peter – Henrique o Navegador. Lisboa: Livros Horizonte, 2016, p. 47.
2 Para acompanhar esta conjuntura de inícios de reinado de D. João I, o seu casamento, assim como do nascimento do infante D. Henrique no Porto consultámos: MIRANDA, Flávio, SEQUEIRA, Joana, DUARTE, Luís Miguel – História do Porto: A cidade e o Mestre: entre um rei bastardo e um príncipe perfeito. Matosinhos: Quidnovi, 2010, pp. 25-37, vol. IV.
3 OLIVEIRA E COSTA, João Paulo – Henrique o Infante. Lisboa: A esfera dos livros, 2009, p. 72.
4 ZURARA, Gomes Eanes – Crónica da Crónica da tomada de Ceuta por el-rei D. João I (ed. Francisco Maria Esteves Pereira). Lisboa: Academia das Sciências de Lisboa, 1915, p. 112. O capítulo XXXV desta crónica descreve toda preparação da armada que partiu do Porto, assim como os acontecimentos que apresentamos acima.
5 OLIVEIRA E COSTA, 2009, p. 134.