José Ribeiro e Castro
Discurso do Presidente da Direcção da Sociedade Histórica, José Ribeiro e Castro, membro da Comissão de Honra das Comemorações
Viseu, Claustro da Sé, 27 de Maio de 2023
Senhor Presidente da Câmara Municipal de Viseu,
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Que grande dia este para a Cidade de Viseu e para os viseenses! Que grande dia em que iniciamos as celebrações dos 900 anos do foral de Viseu, dado por D. Teresa, mãe do nosso rei fundador D. Afonso Henriques.
Por convite da Câmara Municipal, que muito agradeço, é uma grande honra poder, aqui, nesta ocasião, dirigir-vos algumas palavras, em nome da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, sobre esta Carta de Foral de 1123.
«In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti. Ego regina Tarasia Ildefonsi regis filia. Videns et cognoscens fidelitatem et bonum servicium in homines de Viseo [não vos lerei mais deste trecho inicial em latim] placuit michi ut facerem illis firmitatis scripturam de bono foro et de bona consuetudine quod semper inter illos sit nullo cogente sed ex propria mea volumptate atque cum sana mente.» – assim começa a Carta de Foral.
“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Eu rainha Teresa, filha do rei Afonso, ao ver e conhecer a fidelidade e o bom serviço das gentes de Viseu, aprouve-me, não pela força, mas por minha vontade e de mente sã, fazer-lhes a confirmação firme por escrito do bom mercado e do bom costume que deve sempre existir entre eles.”
Não são muitas as vilas ou cidades que podem reclamar tamanha antiguidade de título concelhio ou municipal, a fundar a autonomia da sua afirmação e administração. Viseu é um desses casos e antes mesmo de haver Reino de Portugal. Mas, antes, detenhamo-nos um pouco na figura de D. Teresa, que outorgou esta Carta de Foral, em Maio (não sabemos o dia) de 1123.
Portugal, como sabemos, derivou do Condado Portucalense, atribuído em 1096 por Afonso VI, rei de Leão, Imperador de Toda a Hispânia, ao casal Henrique de Borgonha e Teresa de Leão. D. Teresa era filha do rei doador e D. Henrique, um nobre francês que se destacara nos combates com os mouros, na defesa dos reinos cristãos. D. Teresa e D. Henrique viriam a ser os pais do nosso primeiro Rei D. Afonso Henriques.
Este Condado Portucalense, que foi destacado do Reino da Galiza, foi, segundo o estudo de Paulo Merêa, uma doação pelo casamento de D. Teresa, mas que não excluía a subordinação de governo [pelo marido, o Conde D. Henrique] à coroa de Leão e Castela”, como explica Joaquim Veríssimo Serrão, que continua: “A esposa detinha a titularidade do senhorio, enquanto D. Henrique apenas possuía o exercício dos poderes constantes da doação. As terras do Minho ao Tejo eram concedidas ao casal, sendo ele [D. Henrique] o governador do Condado Portucalense por força da herança de que beneficiara sua mulher. Mas a doação era a título hereditário e não como préstamo e usufruto.” O fim desta doação era a defesa de uma extensa província ocidental que a coroa de Leão não estava em condições de assegurar sozinha e diretamente e que, nessa época, as circunstâncias da Reconquista aconselhavam a separar da Galiza, dotando-a de governo próprio e de defesa própria também.
O Conde D. Henrique deixou uma crónica de bom governo – e também de bom guerreiro. Para consolidar o povoamento e proteger os direitos dos povos, concedeu meia dúzia de forais, sendo o primeiro Guimarães, em 1096, e os três últimos, em 1111, em conjunto com sua mulher, a Condessa D. Teresa: Sátão, Coimbra e Soure. D. Henrique faleceu em Astorga, em 1112, quando D. Afonso Henriques era uma criança, senão mesmo um bebé – os historiadores dividem-se entre 1109 e 1111 como ano de nascimento do nosso futuro rei.
A partir de 1112, o governo do Condado Portucalense (território de que foi nascendo Portugal) é assumido por D. Teresa, que era – recordemos – a titular efectiva deste senhorio, doado por seu pai, o rei Afonso VI. D. Teresa tem papel marcante na evolução política da fundação da nossa nacionalidade. Nos vários diplomas assinados por D. Teresa, que ilustram bem intensa actividade governativa, designa-se, no início, de Infanta ou Condessa, para, mais tarde, surgir frequentemente com o título de Rainha. Nesses tempos medievais, os títulos «infans» e «regina» pertenciam-lhe também como filha de rei, sendo discutível que titulasse este último com propriedade plena. Mas, seja como for, é com esta expressa invocação que outorga a Carta de Foral de Viseu, como citei de início: «Ego regina Tarasia Ildefonsi regis filia.» – Eu rainha Teresa, filha do rei Afonso.
A Condessa-Rainha procurou, com a sua acção governativa, dar continuidade à acção do marido, o Conde D. Henrique, fazendo-o muitas vezes a partir de Viseu, onde residia parte do tempo. Além dos de Guimarães e Coimbra, estabeleceu em Viseu um paço, que é referido num pergaminho, datado de 25 de Outubro de 1125, como o “palatio de Viseo”, que se crê ter existido nas imediações da Sé de Viseu. E, como se atesta em vários actos condais, estão presentes na sua cúria “homines de Viseo”, os destinatários do Foral, em que exaltara a fidelidade e o bom serviço.
Joaquim Veríssimo Serrão dedica a D. Teresa parágrafos significativos:
“Assiste-se depois ao governo firme de sua viúva, que até 1117, invocando sempre a qualidade de filha de D. Afonso VI — a quem chama, por vezes, imperador das Espanhas —, assina os diplomas como «infans domna Tarasia». A partir de então começa a verificar-se nos actos governativos a indicação de «rainha», que se torna uma expressão corrente desde 1120.
Foi, na verdade, notável a sua acção, no que respeita sobretudo ao povoamento do Condado. Conhecem-se cartas de foral aos habitantes de Ferreira das Aves (Sátão) e de Viseu, em Maio de 1123; a coutar a vila de Ponte de Lima e a beneficiar os seus povoadores; à povoação de Assilhó, onde instituiu a albergaria de «Meigion Frio», que corresponde à atual Albergaria-a-Velha; de doação do burgo do Porto em favor do bispo D. Hugo e sucessores. Muitas igrejas e mosteiros receberam cartas da infanta para estimular o povoamento de lugares e casais vizinhos, tal o caso da abadia de Pendorada, em Marco de Canaveses, de São Pedro de Cete, de Ázere, de Vimieiro, perto de Braga, etc.
Com a ambição de alargar os limites do Condado, D. Teresa estendeu a sua acção para além do rio Minho. Em 17 de Fevereiro de 1122 declarou proteger os moradores de Orense, ali instituindo um mercado mensal e doando bens e direitos senhoriais à respectiva sé. O facto insere-se na sua política galega, para o que se alia a D. Diogo Gelmires, bispo de Compostela, com o fim de diminuir o poder de D. Urraca naquela província. Por diversas vezes atravessou o Minho para impor a sua força militar, o que deu origem ao desforço da irmã que, em 1121, a veio cercar no castelo de Lanhoso. Com o apoio do arcebispo e dos barões galegos pôde obter muitos lugares de Leão e Castela, sobre os quais nunca teve efectivo domínio, que por morte de D. Urraca, em Março de 1126, o novo rei D. Afonso VII veio a anexar.»
É esta política galega de D. Teresa que haveria de determinar o fim do seu governo e o início do percurso triunfante do nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques. Por um lado, estes conflitos a Norte com a sua meia-irmã, D. Urraca (que seria rainha de Leão, entre Afonso VI e Afonso VII); por outro, as relações muito estreitas com um grande nobre galego, Fernão Peres de Trava, de quem teve duas filhas. Segundo alguns, terão casado, o que não é certo. O que é certo é que chegaram a praticar em conjunto actos de governo sobre o Condado Portucalense.
Isto gerou forte oposição entre a nobreza portucalense, especialmente no Minho, receando a consolidação de uma supremacia galesa. As tensões sobem rapidamente a partir de 1125, crescendo o partido afonsino, que incitava o jovem Infante Afonso, filho de Henrique e Teresa, a avançar para o governo do Condado, se necessário, arrancando-o das mãos de sua mãe. O desenlace, como é sabido, foi a batalha de S. Mamede, em 24 de Junho de 1128, em que o nosso D. Afonso Henriques, arrebatou o Condado de que viria a fazer o Reino de Portugal, expressamente reconhecido, primeiro, pelo primo Afonso VII, rei de Leão e Castela, em 5 de Outubro de 1143, e, enfim, também pelo Papa Alexandre III, em 23 de Maio de 1179.
Todavia, o Reino que Afonso I nos fundou não teria sido possível sem a obra prévia conduzida por seus pais, Henrique e Teresa. Escreve Veríssimo Serrão:
«Curvando-se perante a arca tumular que se encontra na sé bracarense, Alexandre Herculano rendeu tributo ao «bom cavaleiro francês», que considerou o fundador da monarquia portuguesa. Os séculos guardaram a lembrança grata do progenitor de D. Afonso Henriques, cuja acção para alargar os limites do condado e o tornar independente de Leão a ninguém oferece dúvidas. Pouco menos que envolto no manto da lenda, D. Henrique viu a sua biografia alargada nos últimos anos, graças ao auxílio de uma valiosa documentação, o que não obsta a que continue a ser discutida a sua actuação política em que pode veladamente captar-se o ambicionado projecto de transformar o Condado Portucalense em reino. Não lhe estava reservada essa glória, ainda que tenha realmente contribuído para ela.»
E a propósito da Condessa-Rainha, além dos trechos que já citei, Veríssimo Serrão resume:
«De maneira geral não escondem os historiadores a admiração que lhes merece a figura de D. Teresa, cuja acção marcada pela valentia e pela astúcia contribuiu para desanexar o Condado do reino de Leão.»
Minhas Senhoras, Meus Senhores,
Na visão que tenho da História, esta não é afundar-nos passado, mas fundação do futuro. É um alicerce fundamental e define traves-mestras. É até alavanca, uma poderosa alavanca à nossa disposição. É fonte, uma inesgotável fonte de ensinamentos e inspiração, para não repetirmos erros e buscarmos a energia e a confiança, a alegria e o entusiasmo indispensáveis a vencermos os desafios do nosso tempo, irmos mais além, chegarmos tão longe quanto nunca fomos. A História é isso: guia de sonhos e ambição, fermento de propósito, raiz de exigência e de paixão. É assim que olhamos estes 900 anos que estão a chegar.
Falando dos 900 anos de Viseu, falo também dos 900 anos de Portugal.
Dos vários reinos cristãos medievais que se formaram na Península Ibérica nos tempos da Reconquista, só um chegou aos nossos dias: Portugal. Todos os outros desapareceram: Leão, Castela, Aragão, Navarra, outros menores ou partes de alguns destes. Portugal está cá.
Está cá como nasceu com as fronteiras com que foi formado a partir do Condado Portucalense, em 1096; com as fronteiras como foi reconhecido independente em Zamora (em 1143) e pelo Papa (em 1179); e com as novas fronteiras que resultaram de novas conquistas para Sul, até ao Algarve, e da partilha da fronteira oriental definida em 1297, reinando D. Dinis, ou que decorreram das descobertas, mar adentro, da Madeira e dos Açores, entre 1419 e 1452.
A antiguidade do nosso país é rara e impressionante, sobretudo com esta estabilidade de fronteiras. Mais ainda por sermos o único país que conheço cujo território se completou não por uma conquista, mas por uma descoberta, não por uma guerra, mas por um acto de ciência e ousadia sobre o desconhecido, seguido por povoamento pacífico. De país improvável tornámo-nos o mais antigo Reino da Península e um dos Estados mais antigos da Europa.
Um dos segredos da longevidade e estabilidade de Portugal está nestes forais e na forma como o relacionamento dos reis com os povos, foram forjando a nacionalidade portuguesa. Está é certo também na fé e na língua, que D. Dinis fez língua nacional. Mas está muito nesta relação estreita com os concelhos, escrita e reforçada pelas Cartas de Foral.
Por isso, na Sociedade Histórica, olhando aos 900 anos de Portugal – sobre um ciclo largo de 1128 a 1179 – definimos um projecto específico, chamado “Forais da Fundação, Municípios de Portugal”. Para nós, os 900 anos de Portugal não são uma varanda em que olhamos a paisagem. São o seu enraizamento popular, descentralizado, nas terras que fizeram Portugal: isto é, aquelas terras que receberam foral do Rei fundador e de seus pais.
No primeiro apanhado que fizemos e estamos a trabalhar, identificámos um total de 60 forais, até à morte do nosso muito conhecido e querido D. Afonso Henriques. Mas convém ter a noção dos primeiros: até à conferência de Zamora (1143), foram outorgados 20 forais:
• seis forais por D. Afonso Henriques, sendo o primeiro em 1130 (Numão);
• oito forais por D. Teresa, entre os quais o de Viseu, no mesmo ano que o Porto e anterior a este;
• e seis forais por D. Henrique, o primeiro a Guimarães (1096) e os últimos três em conjunto com D. Teresa (1111), que já referi.
Depois de a nossa independência ser reconhecida em 1143 pelo Reino de que nos autonomizámos em definitivo, houve mais 40 ainda no reinado da Fundação. Lisboa também está neste grupo: conquistada em 1147, só em 1179 receberia foral, 56 anos após Viseu.
Este conjunto de 60 forais queremos deixá-lo por conta dos historiadores, para que o definam e estabeleçam em definitivo – tanto quanto a História pode ser definitiva… É um capital essencial para a definição e o bom entendimento do nascimento de Portugal. O elenco dos forais depende, nalguns casos, do critério adoptado. Por nós, seguimos critério apertado, mas, tratando-se de património imaterial tão importante para a memória colectiva, quer local, quer nacional, consideramos essencial que seja estabelecido com a chancela mais autorizada.
A ideia que temos no projecto “Forais da Fundação, Municípios de Portugal” é, por um lado, ir levando e levantar por todo o lado a boa nova dos 900 anos de Portugal e, por outro, favorecermos que se refaça, com os pés na terra, o bom espírito gregário, coeso, popular, generoso, com que a nacionalidade se forjou a partir do século XII. Queremos associar todos estes concelhos sob o selo dos 900 anos, de que cada um deles foi senhor na sua terra, repetindo em conjunto o espírito profundo de Portugal e o lema do anúncio: “As terras que fizeram Portugal já estão a fazer 900 anos.“
Hoje, é o dia de Viseu. Viseu que fez Portugal já está a fazer 900 anos.
Viva Viseu!
Viva Portugal!