“A Pátria Vos Contempla” Sacadura Cabral e Gago Coutinho no Centenário da 1.ª travessia aérea do Atlântico Sul

Cerimónia do Centenário da travessia aerea do Atlântico Sul Cerimónia do Centenário da travessia aerea do Atlântico Sul
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Alocução apresentada pelo sócio da SHIP Dr. Lourenço H. Henriques-Mateus


Senhor Presidente da República. Excelência.

Senhora Ministra da Defesa Nacional

Senhor Almirante Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas

Senhor Secretário de Estado da Defesa Nacional

Senhor Almirante Chefe do Estado Maior da Armada

Senhor General Chefe do Estado Maior da Força Aérea

Ilustres Convidados


Alguma coisa temos que fazer para nos considerarmos dignos daqueles que, no passado, nos desbravaram o caminho.

Os protagonistas da 1.ª travessia aérea do Atlântico Sul, no Rio de Janeiro (1922).

Estas palavras escritas pelo punho do próprio almirante Gago Coutinho a propósito das navegações quinhentistas, foram aqui postas em prática, há cem anos, por dois oficiais da Armada, secundados por muitos outros camaradas, cujos nomes jazem na penumbra da História, mas a quem hoje aqui cabe também, a glória do feito que celebramos.

Feito, que então se traduziu na 1.ª travessia aérea do Atlântico Sul nesse tempo, uma extraordinária façanha aeronáutica de repercussão mundial.

Extraordinária, pelas inúmeras dificuldades que apresentava, e pelos incontáveis problemas técnicos e científicos que os comandantes Sacadura Cabral, e Gago Coutinho tiveram que resolver, antes, e durante a viagem.

Proeza, que não estava ao alcance dos mais ousados, mas dos mais aptos pois, nesse tempo de Ares nunca d´antes navegados, não bastava ter um avião e ser audaz para voar com precisão sobre o mar.

Era preciso mais… E muito, muito mais, era aquilo que os dois aviadores da marinha portuguesa em si guardavam, aptos que se sentiam, pela tenacidade que os animava, pela disciplina intelectual e física que tinham, pelo rigor que praticavam, e sobretudo pelo espírito de sacrifício que estavam habituados a devotar à Pátria que serviam.

Mas aptos, também, por serem os mais bem preparados para a missão que se propunham realizar tanto pelos estudos que haviam feito, como pela experiência acumulada, ao longo de anos, como marinheiros e geógrafos militares.

Aptidões que lhes permitiram percorrer o ignoto espaço aéreo entre Lisboa e o Rio de Janeiro tal como haviam percorrido as terras de África sempre com a vida metida em despesa mas com o menor risco possível e a maior margem de sucesso provável.

Expedição aérea durante a qual patentearam ao mundo a valia dos seu trabalho científico tal como o préstimo dos instrumentos e métodos ­por ambos desenvolvidos para a prática segura da aeronavegação .

Aeronavegação marítima, que até 1921 (até à conclusão da bem-sucedida viagem aérea entre Lisboa e o Funchal por ambos realizada como ensaio para a Travessia aérea do Atlântico Sul, juntamente com Ortins Betencourt e Roger Soubiran) se revelara tão imprecisa como arriscada.

Imprecisa e arriscada porque, ­nas quatro viagens aéreas de âmbito mundial até então empreendidas por aviadores de diferentes nacionalidades, em todas se patenteara de maneira diversa, mais arrojo do que ciência, e maior emprego de recursos materiais e humanos do que de métodos científicos e resultados precisos ; Sendo, por isto mesmo, e quando vistas à luz da progressão aeronáutica tão estéreis como irrepetíveis.

Progressão aeronáutica, que desde o termo da Grande Guerra, elevava cada vez mais as asas dos aviões e lhes alargava o raio de acção , vencendo milenares barreiras geográficas e abeirando do mesmo horizonte de progresso povos e culturas.

Horizonte de progresso, que o comandante Sacadura Cabral antevia a seu modo, como JOIA DO OUSAR ­que foi ! segundo Fernando Pessoa, e sobretudo, como personificação plena da modernidade do primeiro quartel do século XX onde o dinamismo se impunha à indiferença e o desembaraço à lentidão. Porque a presteza se tornara num modo de vida, e o céu num caminho aberto pela humanidade.

Caminho inédito, até então estorvado pela impossibilidade física de interpretar a sinalética do firmamento, quando em voo, tal como o faziam os mareantes sempre que procuravam conhecer a sua posição.

E como novos caminhos ­exigem tecnologia recente e reconfigurações do pensamento, ­ o comandante Sacadura Cabral avassalou-se sobre os problemas que se impunham, para superar as circunstâncias que os ditavam

Trabalho, que desde logo, contou com os conhecimentos e dedicação do seu ‟caro ex. chefe” o comandante Carlos Viegas Gago Coutinho um geógrafo de mão cheia, diligente e incansável, que ele bem conhecia, pois com ele trabalhara, durante alguns anos, em cenários distantes e circunstâncias inóspitas para o comum dos mortais.

Parceria, que não tardou em dar bons frutos: pois o Corrector de Rumos e a adaptação de um Horizonte Artificial ao sextante, são disso provas palpáveis. Provas, por detrás das quais se ofusca um imenso estudo, de rigor científico, que a Aeronáutica logo tentou conhecer.


Estudo, que nasceu da insatisfação do piloto-aviador, do desejo de saber do geógrafo, e da aptidão dos dois marinheiros para resolver as contrariedades que impediam a prática da aeronavegação .

Num par de anos entre 1919 e 1921, ambos alcançaram os resultados que lhes permitiram abalançar-se na viagem aérea Lisboa – Funchal.

E logo no ano seguinte enriquecidos pelo triunfo aqui estavam mais uma vez, nesta doca junto de nós, que herdara o feliz nome de um convento antigo consagrado a Nossa Senhora do Bom Sucesso.

Bom sucesso, que era aquilo que todos esperavam. Não só os aviadores e homens da Armada envolvidos na preparação e apoio da viagem aérea ao Brasil, mas quantos viam nesta o franquear de um tempo novo para Portugal.

Tempo que viraria definitivamente a página cediça do século XIX, para lançar o país nos valores e rumos da contemporaneidade.

Contemporaneidade que esta viagem implantava no centro da aviação mundial, onde só alguns países jogavam as cartadas decisivas do futuro da aeronáutica.

E foi cientes de tudo isso, que os dois aviadores descolaram do Tejo naquela madrugada de 30 de março de 1922.

Sem gestos efusivos nem grandes despedidas, imersos nos seus próprios pensamentos, em comunhão com a máquina, e aureolados pelo arco-íris passageiro com que a meteorologia os brindou. Para trás, no paredão da doca, deixavam alguns jornalistas e repórteres fotográficos nomes conhecidos, que fixaram o momento com as palavras e imagens que hoje conhecemos.

Sacadura Cabral e Gago Coutinho — protagonistas da 1.ª travessia aérea do Atlântico Sul.

Já ao longe, a escassa centena de pessoas que então testemunhou aquele momento inolvidável, pressentiu que era alguma coisa mais do que a esperança que partia com os dois aviadores.

Alguma coisa mais do que uma máquina que se queria levar até ao Brasil, naquele ano em que se cumpria o primeiro centenário da sua independência. Era… qualquer coisa… que a Razão não podia explicar, mas que o coração dos portugueses não tardou em reconhecer nas páginas da sua História.

Já no ar, o que então se pretendia pôr à prova, não era a resistência e o desempenho da uma aeronave construída em Inglaterra, mas a excelência dos conhecimentos científicos e dos instrumentos nacionais que estavam na base da travessia aérea do Atlântico Sul. Usando palavras inspiradas pelos escritos de Gago Coutinho não era o realejo que movia os dois aviadores navais, mas a intenção de comprovar, na prática, o rigor dos seus métodos de aeronavegação.

Prova, que Sacadura Cabral e Gago Coutinho não podiam entregar em mãos alheias, ­por imperativo intelectual que ambos assumiam sem vaidade pois, se os seus cálculos não estivessem certos, só a eles caberia pagar o preço supremo do seu erro.

SOCIEDADE HISTÓRICA DA INDEPENDÊNCIA DE PORTUGAL
Travessia Aérea
Travessia Aérea

Certeza que se confirmou na etapa de 18 de Abril de 1922, que decorreu entre Porto Praia e os minúsculos Penedos de S. Pedro, já território Brasileiro, quando foram percorridas 918 milhas náuticas em 11 horas e 21 minutos, sem qualquer apoio externo, comunicações, ou outros meios de orientação para além daqueles que se achavam a bordo.

Momento em que se levou até ao extremo dos limites possíveis e muito para lá dos aceitáveis todo o rigor da aeronavegação executada por Gago Coutinho e da Pilotagem realizada por Sacadura Cabral, no termo do qual se atingiu um ponto pré-determinado, onde navio República os aguardava.

Foi isto que maravilhou o mundo daquela época. E foi isto, também, o que reconciliou momentaneamente os portugueses e uniu as nações Lusíadas em torno do mesmo abraço.

Volvidos dois anos sobre este dia supremo o mar arrebatou para sempre Sacadura Cabral.

Gago Coutinho sobreviveu-lhe quase três décadas e meia, tempo bastante para a Aviação mudar a face do mundo. Mas… o tempo.. não conseguiu apagar do mundo a façanha que inscreveram na História.

Quando daqui partiram, nessa alvorada de Março, Sacadura Cabral e Gago Coutinho eram apenas dois homens com uma missão por cumprir. Decorrido um século neste mesmo lugar da partida é a Pátria Reconhecida que os contempla. Porque a Pátria e a Ciência souberam Honrar.

Lourenço Henrique Henriques Mateus
Dr. Lourenço Henrique Henriques Mateus