João Loureiro
Ao aceitar o honroso convite do Senhor Presidente do Conselho Supremo para abordar, neste ciclo de conferências, o tema “Portugal e as suas relações com os países da CPLP”, de imediato me ocorreu que teria de delimitar previamente o âmbito da minha intervenção quanto ao seu objeto, mas também quanto à perspetiva de abordagem do tema escolhido.
Na verdade, constituindo a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, nos termos dos seus estatutos, a organização multilateral vocacionada para o aprofundamento da amizade mútua, da concertação político diplomática e da cooperação entre os seus membros, e desdobrando-se esta última área da cooperação nos domínios económico, social, cultural, jurídico e técnico-científico, seria simultaneamente pretensioso e inútil querer abarcar, no tempo disponível, todos estes aspetos.
Pretensioso, porque obviamente não disponho de competências tão alargadas. Inútil, porque teria forçosamente que me limitar a generalidades que a ninguém aproveitariam.
Daí a decisão de centrar a minha comunicação naquela que considero dever ser a dimensão mais relevante desta singular associação que é a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, inclusive para a definição de estratégias com vista à sua consolidação no futuro: a Cultura.
É aliás um elemento da Cultura e a sua forma instrumental de expansão, a Língua Portuguesa, aliada a um incontornável passado multissecular comum, que está na origem genética da CPLP.
E no âmbito material da Cultural optei por eleger a temática do Património e da Memória comuns aos países membros, por diversas razões.
É indiscutivelmente um fator integrante da identidade das Pátrias e da formação dos seus desígnios.
Encerra valores consensualmente reconhecidos como dignos de preservação e de valorização (v.g. o que se passa como Património Mundial Classificado da UNESCO).
É notoriamente um tema caro à missão da Sociedade Histórica e às reflexões e motivações dos seus associados.
E relativamente a ele, perdoem-nos a imodéstia, penso que vos poderei trazer alguma novidade e dados interessantes sobre o estado do Património e da Memória nos países lusófonos, para que possamos extrair no final algumas conclusões.
Daí que a focagem do objeto escolhido seja a que decorre das minhas vivências e experiências pessoais, baseadas em fotografias e imagens que colhi nas últimas décadas em que, por motivos profissionais ou em viagens de férias, percorri muitos dos espaços geográficos que constituíram o Império dos nossos antepassados mais remotos, o Ultramar dos nossos Avós, dos nossos Pais e de tantos de nós aqui presentes, ou esta vasta e singular Comunidade dos Países de Língua Portuguesa que, apesar de tardiamente erguida, reúne, como veremos, todos os ingredientes necessários para ser um valor fundamental e estimulante do futuro de Portugal.
Portugal, como Pátria-Mãe, o Brasil e as cinco nações africanas que falam a língua portuguesa têm uma vastíssima e ímpar herança cultural comum, que inclui o património construído e a memória histórica, os saberes científicos acumulados sobre os seus territórios e recursos naturais e humanos, além de fortíssimas partilhas de vivências e de afetos.
Todos têm uma relação pacífica e de aproximação, fundada na paridade e no respeito recíproco.
O espírito da CPLP que, enquanto modelo de união de Estado está muito longe de ser forte, V.g. do tipo federalista ou de confederação, tem todavia inspirado a proliferação de centenas de organizações ou estruturas com substância e fôlego lusófono: desde as bastantes vezes criticadas mas ainda assim valiosas RTP África e RDP África, até aos seminários e encontros periódicos de cientistas, historiadores, escritores e poetas, universidades, professores, médicos, agrónomos, economistas, militares, magistrados e tantos outros ativistas; desde a também singular União das Cidades Capitais dos Países de Língua Portuguesa até às incontáveis geminações de cidades e vilas portuguesas com equivalentes brasileiras e africanas, com propósitos de cooperação em vários domínios.
A cidadania e a sociedade civil impuseram-se à inércia ou à retórica inconsequente de protagonistas políticos.
Sinceramente vejo na Comunidade de País de Língua Portuguesa, que assenta raízes profundas na língua e nos valores históricos comuns, um caminho estratégico com largos horizontes e futuro.
Ao contrário do que penso sobre a ideia da União Europeia, tendencialmente federalista, mas na prática recente verdadeiramente imperial, com base nos ditames do eixo Berlim – Paris.
No âmbito da CPLP não descortino que exista o perigo de alienarmos injustificadamente soberania, de perdermos a independência ou de deformarmos a identidade.
Entre outros, e nos seus precisos termos estatutários, a CPLP regulasse pelos princípios da igualdade soberana dos Estados membros e do respeito pela sua identidade nacional.
Por seu lado, é inequívoco que no contexto do atual Império Europeu, a soberania deixou de residir nas vontades nacionais (v.g. como se desrespeitaram referendos) e nos órgãos eleitos do Estado, para passar a residir nos burocratas de Bruxelas, no BCE, no FMI e nas agências de “rating”.
Bem andou assim a Comissão de Revisão dos estatutos desta Sociedade Histórica, ao reformular o respetivo articulado e ao introduzir um preâmbulo que muito em breve serão apreciados pela sua Assembleia Geral, privilegiando na definição da sua missão e objetivos conceitos com a “Nação Peregrina” ou o “amor à Pátria, à Língua Portuguesa e ao Mar que universalizou Portugal e a Lusofonia”.
É certo que terminadas as devastadoras guerras pós-coloniais e substituídas as ditaduras marxistas por democracias pluralista ou semidemocracias mais ou menos toleradas, todos concordarão em que as Nações Lusófonas alcançaram um estádio de relacionamento pacífico, próximo, maioritariamente descomplexado, aberto, alicerçado em passado comum de que ninguém tem de se envergonhar, desejado por todos e reciprocamente proveitoso.
Se não existissem as traições, as demissões e as irresponsabilidades de há quase cinquenta anos, poderíamos ter alcançado tal estádio de convivência e cooperação em vários domínios com mais celeridade e menos traumas, mas convém ter em conta que essas décadas representam uma fatia importante das nossas vidas, mas são desprezíveis e irrisórias na História das Nações.
Ninguém duvidará que a aposta na valorização da dimensão cultural, e em particular as facetas relevantes do Património e da Memória de que nos ocuparemos, assumem peso crucial no reforço da unidade espiritual dos cidadãos da CPLP.
É por isso altura de nos interrogarmos sobre o que é feito do Património e dos símbolos da Memória que integram o acervo histórico comum a Portugal e à Lusofonia, e que nos anos da debandada não foi acautelado nem mereceu a mínima das atenções dos governantes de então.
Que será feito dos símbolos e das marcas desse Património e dessa Memória, nomeadamente qual o seu destino e estado atual?
Vou socorrer-me atualizando-o, de um artigo que escrevi na revista do “Expresso” de 19 de Outubro de 2002, intitulado “Será que os portugueses têm memória?”
Nestas matérias somos muito diferentes de americanos, de ingleses ou de outros europeus, mostrando-nos quase sempre envergonhados, complexados e desleixados onde os outros se revelam orgulhosos e diligentes com as honras devidas à sua História e aos seus maiores vultos. Ao ponto de recebermos tão inesperadas quanto desaproveitadas lições, como esta: “Samora Machel de visita a Portugal, perante a lista de para-quedistas mortos em Moçambique existente na Base de Tancos, observou com solenidade: «Fazem parte da nossa História».” (in Expresso, 8/10/83).
Do património edificado deixado em terras tropicais proponho-me destacar as fortalezas, as igrejas, os monumentos, as estátuas, os cemitérios e os conjuntos urbanos designados por centros históricos.
Ressalvando as intervenções meritórias de duas fundações privadas em ações de restauro e de manutenção, não é conhecida qualquer estratégia ou 46 atuação global do Estado português na sua preservação.
A Fundação Oriente recuperou património na Índia e em Macau.
A Fundação Gulbenkian está há muito vocacionada para as ações de reabilitação em locais de muito antiga presença lusa, V.g. Arzila, Mombaça, Ouidah, Cochim, Ayutia, e outros, e promoveu a edição de uma monumental obra em três volumes sobre Património de Origem Portuguesa no Mundo.
Na lista do Património da Humanidade da UNESCO atribui-se essa categoria a 22 locais que, estando fora de Portugal, são de origem portuguesa.
Já o Comandante Malhão Pereira, em conferência proferida neste Palácio, registava que dos 144 Estados incluídos naquela lista só 15 tinham maior número de locais classificados do que Portugal, mas se fossem adicionados aqueles 22 locais ficaríamos num fantástico 4° lugar mundial!
Prestemos agora atenção ao que se passa com o Património e com os símbolos da Memória de que nos ocupamos.
A Cidade Velha, em Cabo Verde, foi a primeira a ser construída pelos europeus em África, no século XV, a sua primeira capital, e é desde 2009 Património Mundial da Humanidade.
Sendo Cabo Verde uma sociedade crioula ou euro-africana, muitos sinais portugueses persistiram após a independência, mas não se escapou à retirada de outros.
Todavia a estátua de Sá da Bandeira já foi recolocada há muito no jardim da Praça Nova, no Mindelo.
O mesmo aconteceu com o busto do Infante D. Henrique, na Assomada (2008).
Na Guiné, os herdeiros políticos de Amílcar Cabral, que sempre escreveu que “a luta do povo guineense era contra o regime colonialista, e não contra o povo português, retiraram de Bissau as estátuas dos navegadores Diogo Gomes e Nuno Tristão, e do único governador negro que a Guiné teve, Honório Barreto, que só em princípios dos anos noventa foram removidas e encostadas aos muros interiores do pequeno forte do Cacheu.
Registe-se todavia que em todo o território deste país subsistem inúmeros pequenos monumentos ou placas comemorativas da passagem das unidades militares portuguesas, ou evocativas da memória dos seus mortos.
São ignorados em Portugal, mas respeitados e até protegidos pelas populações guineenses.
Em S. Tomé, os dois descobridores e o primeiro capitão donatário da ilha, João de Santarém, Pero de Escobar e João de Paiva, viram as suas estátuas derrubadas e deitadas no chão fronteiro à Fortaleza de S. Sebastião, até à queda do regime de partido único pós-colonial e ao estabelecimento da democracia.
Foram reerguidas junto àquela Fortaleza que é hoje igualmente Museu, embora um diário lisboeta, por incompreensível masoquismo, publique repetidamente uma foto de arquivo com elas prostradas no solo, sempre que se insere notícias de S. Tomé e Príncipe!
Quanto a Angola, vi recolhidas no Museu das Forças Armadas que atualmente funciona na Fortaleza de S. Miguel, as antigas estátuas de Luanda – do navegador Diogo Cão ao governador oitocentista Pedro Alexandre da Cunha, do restaurador Salvador Correia de Sá ao Rei fundador D. Afonso Henriques, cuja estátua foi curiosamente oferecida à cidade pela Associação dos Naturais de Angola, em 1941.
Mas que será feito da estátua de Manuel Cerveira Pereira, o fundador de Benguela em 1617, que existia nesta cidade?
A estátua do Alto-Comissário republicano Norton de Matos, em Nova Lisboa (Huambo) já regressou ao seu pedestal primitivo.
A do sertanejo Silva Porto na cidade que adotou o seu nome no Bié encontra-se no chão junto à antiga embala.
A de João de Almeida, explorador do Sul de Angola de há cem anos, em Sá da Bandeira (Lubango), encontra-se derrubada no quintal do Museu de Huíla.
E a estátua de “Maria da Fonte”, em Luanda, porque terá sido dinamitada aquando da independência e substituída por um blindado angolano carregando um blindado sul-africano?
A “Maria da Fonte” homenageava as campanhas da I Guerra Mundial no Sul de Angola, quando as tropas europeias e maioritariamente africanas defendiam as fronteiras do sul contra os alemães, as mesmas que os blindados angolanos queriam preservar contra os invasores sul-africanos!
Tenho sérias dúvidas que o Estado português ou quem o deve representar nestes domínios dos ativos culturais no estrangeiro tenha resposta pronta para estas interrogações.
Em Moçambique, o panorama não é tão desolador quanto na outra costa, o que é devido em grande parte à intervenção e à sensibilidade de algumas instituições do país, de que é justo salientar o Arquivo Histórico de Moçambique e os seus competentes quadros.
Na capital, o Museu da Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição acolheu dignamente as estátuas de Mouzinho de Albuquerque, de António Enes e outros símbolos da colonização, e o exemplo foi seguido em Nampula, cujo Museu Nacional de Etnologia abrigou a estátua de Neutel de Abreu, um dos protagonistas militares da chamada ocupação efetiva.
A cidade-museu da Ilha de Moçambique, classificada como Património Mundial pela UNESCO, já recolocou nos mesmíssimos sítios as estátuas de Vasco da Gama e de Luís de Camões, e o memorial de pedra em homenagem ao governador-geral Almirante Sarmento Rodrigues.
Já na capital da província da Zambézia, o antigo governador-geral João de Azevedo Coutinho viu desde 1975 a sua estátua escondida num obscuro depósito municipal.
E que será feito das estátuas de João Belo no Xai Xai, de Vasco da Gama em Inhambane; ou de Caldas Xavier na Beira?
Sobre o modo como deve ser encarado o respeito pelo passado histórico das nações, não resisto a transcrever o que li numa interessante biografia de Eduardo Mondlane, a propósito da visita deste a uma circunscrição de Gaza (Moçambique), nos princípios dos anos sessenta, na qualidade de técnico superior das Nações Unidas:
“A administração estava situada num local maravilhoso com vista para o grande lago. À frente, os portugueses tinham construído um bonito parque com estatuetas no interior de um pequeno lago…
Mas o que era extraordinário aqui é que perto da entrada havia uma grande árvore, com uma pequena placa dizendo que era ali o lugar onde o Gungunhana se costumava sentar com os seus conselheiros quando tinha que tomar decisões. O administrador português tinha tido suficiente sentido da História para manter a memória daquele homem, embora ele tenha sido o arqui-inimigo dos portugueses” (in Nadja Manghezi, “O Meu Coração Está nas Mãos de um Negro”, Maputo, 1999, pág. 203).
Que pensar e concluir de tudo isto?
É certo que a conjuntura difícil, insegura e angustiada que se viveu no então Ultramar em 1974/75, explica em parte que todas estas questões fossem subalternizadas.
É certo que eram tempos de transição para novos regimes, mas como cedo se constataram as violências gratuitas, que degeneraram em guerras civis; e as arbitrariedades quotidianas, que se banalizaram nas novas ditaduras, nada justificava que os nossos governantes de então passassem a vida a desfazerse em desculpas idiotas e a bajular os novos senhores que não eram exemplo para ninguém.
O pior de tudo, não esqueço porque o testemunhei “in loco” no Uíge e em Luanda, em 1975, foi o humilhante e escancarado espetáculo, em que se viram monumentos, estátuas e outros símbolos nacionais serem lentamente arrasados ou mutilados, isto ainda durante o exercício da soberania portuguesa.
Sinto no entanto que este período negro da nossa História foi há muito ultrapassado e superado pela actual relação pacífica, paritária e de proximidade existente em vários domínios das nações lusófonas.
Há muita vida para além duma colonização que durou séculos, mas que deixou vasta herança, em cuja relação de bens só um preconceituoso não verá que as verbas do Ativo excedem largamente as do Passivo, que também as há.
Mas há sobretudo muito mais vida para além de uma Descolonização que durou escassos meses, mas que deixou um legado horrendo de guerras civis, regimes de partido único e relações complexadas entre lusófonos.
É essa nova vida ou ciclo da História que foi possibilitada pelo surgimento do modelo da CPLP, com crescentes ramificações em várias áreas da política, da economia, da ciência e da cultura, quase sempre da iniciativa e responsabilidade das sociedades civis.
Para o seu fortalecimento e robustez, de modo a ter influência determinante no desenvolvimento dos países lusófonos, as respetivas lideranças políticas devem assumir a ideia da CPLP como um desígnio nacional.
A via igualitária lusófona, gerada pela história e pela língua comum, afigura-se-me claramente sentida e desejada pela maioria dos cidadãos das suas Nações.