José Varandas
A bula Manifestis probatum de 23 de maio de 1179
Conferência apresentada à Sociedade Histórica da Independência de Portugal
23 de maio de 2021
José Varandas 1
Pelo terminar da década de vinte do século XII, os anos de 1128 e 1129 marcam decisivamente o início da tomada de poder pelo jovem D. Afonso Henriques no Condado Portucalense e o início de um percurso que levaria ao reconhecimento da independência de um vasto território que até aí integrava o reino de Leão. A maioria dos historiadores portugueses, e os programas de ensino da História de Portugal, são unânimes em afirmar que em 1139, com a vitória na mítica batalha de Ourique, o prestígio político do jovem príncipe aumentou consideravelmente e passou a intitular-se rei de Portugal, título que foi reconhecido no Tratado de Zamora pelo seu primo, Afonso VII, imperador de todas as Espanhas.
O condado crescia em capacidade militar a olhos vistos, mas a ameaça leonesa, e as suas eventuais represálias, estavam sempre presentes e limitavam bastante a ambição secessionista da maioria da nobreza portucalense, e dos moçárabes de Coimbra. E Afonso Henriques, tenente dos territórios de Astorga, era vassalo de Leão. Faltava, por isso, o reconhecimento do papa, a autoridade internacional por excelência à época, sobre a legitimidade, a todos os níveis, da independência portuguesa.
Em 1143 os esforços diplomáticos de elementos muito próximos do conde portucalense, mas com algum prestígio junto da Santa Sé, conseguem que em Roma seja aceite um juramento de vassalagem ao papa, e que é renovado no ano seguinte como o demonstra a carta Claves regni celorum, onde o novo vassalo se compromete a pagar um censo anual de quatro onças de ouro. Em contrapartida o documento papal garantia a proteção pontifícia e que nenhum poder espiritual ou temporal interferisse no governo das terras portuguesas. O chefe da missão foi o arcebispo de Braga, D. João Peculiar, mas este esforço diplomático obteve um sucesso parcial. A iniciativa contrariava a política de Roma: a Santa Sé entendia que se impunha, na Hispânia, a união dos reinos e demais territórios cristãos sob a coordenação de um poder único, o do imperator Afonso VII, que melhor garantisse a vitória final sobre o Islão. Lúcio II, pela bula Devotionem tuam, de 1 de maio de 1144, aceita a vassalagem, o censo anual e a doação do território, mas dá a Afonso Henriques simplesmente o título de dux Portugallensis, ignorando as contrapartidas pedidas pelo líder português.
Mas o esforço diplomático do Condado vai continuar. Os vários papas que se sucedem são informados sobre os sucessos militares do comando português que vai alargando as fronteiras por terras do Alentejo e das Beiras, valorizando cada vez mais o território que havia sido doado à Santa Sé. E, em 1173, o cardeal-legado, D. Jacinto, já incluía D. Afonso entre os reis peninsulares. Finalmente, oito anos depois, a 23 de maio de 1179, Alexandre III concede-lhe o título de rei de Portugal, não a título de graça, mas por ter ficado provado, manifestis probatum est, que os feitos militares do príncipe amplamente o mereciam.
Sem dúvida a suserania papal era preponderante sobre todos os sistemas de poder existentes na Europa cristã e a autoridade do Papa aumenta durante o pontificado de Alexandre III. Os esforços portugueses foram consideráveis e pacientes e D. Afonso Henriques ao tornar-se dependente da Santa Sé e prestando vassalagem ao papa vem a obter o apoio indispensável para garantir uma independência já adquirida de facto, mas que custou a ser confirmada expressamente pela única autoridade que a podia conceder. O teor da bula recebida é bem claro sobre a concessão do privilégio solicitado.
A independência, e o título de rei que a sustém, são concedidos pelos serviços prestados pelo príncipe português à Cristianitas, à Igreja, pela propagação da fé cristã e dos êxitos sucessivos na guerra travada contra os muçulmanos. Para sempre ficará preservada a memória de D. Afonso Henriques, um exemplo perfeito de um príncipe escolhido pela Providência divina para governar e salvar o seu povo. Assim, o papa, sublinhando as qualidades de prudência, justiça e idoneidade de governo, toma D. Afonso Henriques sob a proteção de São Pedro, concede e confirma por autoridade apostólica ao seu domínio o reino de Portugal com todas as honras inerentes à realeza, bem como as terras que arrancara das mãos dos sarracenos e nas quais não podiam reivindicar direitos os vizinhos príncipes cristãos. O privilégio estende-se a todos os seus descendentes, prometendo o papa defender esta concessão com todo o seu poder supremo.
Pela primeira vez, o Santo Padre declarava de forma inequívoca o reconhecimento de Portugal como reino e de D. Afonso Henriques como rei, e salvaguardava os territórios adquiridos na guerra como fazendo parte integrante de Portugal. Foi um passo decisivo para a independência de Portugal e para D. Afonso Henriques, então já muito perto dos 70 anos de idade, que via finalmente ser-lhe reconhecida a dignidade e o título de rei.
Mas Portugal não era já independente, desde o Tratado de Zamora?
De acordo com os termos ali assinados, em 1143, Afonso VII de Leão e Castela já tinha reconhecido Portugal como reino e D. Afonso Henriques como rei, mas isso não era suficiente. O rei leonês intitulava-se imperador e, portanto, apelidar o seu primo de rei era até uma forma de aumentar o seu próprio prestígio entre a Cristandade. Por isso a estratégia de D. Afonso Henriques e dos seus homens, nomeadamente de D. João Peculiar, arcebispo de Braga, visava obter o reconhecimento direto do papa, devido à importância que este possuía na cristandade europeia da época. Aquele influente clérigo declarou o príncipe português vassalo da Santa Sé e manobrou nos meandros diplomáticos da cúria papal para obter a separação e a primazia do arcebispado de Braga sobre Toledo e Santiago de Compostela. Um pormenor de importantes consequências futuras. Esta posição fazia naturalmente parte de uma estratégia diplomática mais vasta, junto de outros reinos da Europa, para acentuar a distinção e a autonomia de Portugal como reino soberano e independente. Mas continuava a faltar o reconhecimento da Santa Sé, que só chega depois de 40 anos de esforços dos diplomatas portugueses.
Sobressai, aqui e hoje, uma pergunta. Por que demorou tanto tempo, esse reconhecimento?
O processo português foi naturalmente lento porque dependia da alteração da conjuntura internacional. O reconhecimento da independência de Portugal não agradava ao conjunto Leão-Castela. Mas a morte do imperador Afonso VII e a separação desses dois reinos, em 1157, assim como a emancipação definitiva de Aragão, facilitou as pretensões portuguesas. Também, por esta altura, a autoridade do papado estava enfraquecida, com o envolvimento em querelas constantes com o Sacro Império Romano-Germânico e o surgimento de vários antipapas. Mas a eleição de Alexandre III, em 1159, alterou este cenário. Este enérgico papa pretendia desempenhar novamente um papel interventivo na cena política internacional. No mesmo ano em que emitiu a bula Manifestis probatum, convocou o 3º Concílio de Latrão, no qual a Santa Sé voltou a afirmar-se como o árbitro da Europa. O reconhecimento de Portugal e de D. Afonso Henriques constituiu, portanto, um sinal de afirmação da autoridade papal.
Mas, voltemos um pouco atrás. O ano de 1131 testemunhou em contexto ibérico uma alteração que viria a revelar-se num futuro não muito longínquo, um dos mais determinantes momentos subjacentes ao processo de transformação de um pequeno condado, localizado no extremo mais ocidental da Europa, numa nova unidade política autónoma e relevante no contexto europeu medieval. No rescaldo da vitória de São Mamede, em 1128, D. Afonso Henriques deslocara o núcleo da antiga residência condal, em Guimarães, para a região de fronteira junto ao Mondego, estabelecendo-se em Coimbra no ano de 1131. Muito tem sido escrito sobre as motivações que levaram o príncipe português a realizar esta mudança para a região onde, livre da influência da nobreza de Entre Douro e Minho, passa rapidamente a apoiar-se política e militarmente noutras instâncias, como Santa Cruz de Coimbra, os cistercienses e a Ordem do Templo.
Na base da emergência de um reino onde descobrimos a raiz de uma entidade que prevaleceria ao longo de quase 900 anos, encontrou-se a perspicácia de uma visão que soube bem compreender desde o primeiro momento, que a resposta às suas ambições pessoais se encontrava muito para lá das fronteiras do seu pequeno condado e para lá das fronteiras peninsulares. A política de D. Afonso Henriques e dos seus homens de confiança acompanha, desde a primeira hora com grande previdência, as oscilações nas relações de forças desencadeadas pelas disputas entre os reinos europeus e o papado.
Num período não muito extenso, compreendido entre os finais do século XI e os inícios do século XII, mais concretamente entre o final da Primeira Cruzada à Terra Santa (1096-1099) e a emergência de Alexandre III (1159), o panorama político e religioso europeu sofre alterações significativas e perduráveis. Ao cisma da Cristandade (1054), que fraturou o mundo cristão e determinou a sua partição entre a Igreja do Oriente, ortodoxa, e a Igreja do Ocidente, católica, seguiu-se a Reforma Gregoriana (1073), que beneficiava os bispos e os mosteiros a favor da liturgia Romana, dando argumento à chamada «Querela das Investiduras». O conflito, que se consubstanciou na disputa pelo poder do «colapsado» Império Romano do Ocidente, entre o Sacro Império Romano-Germânico e a Igreja, não redundou simplesmente numa contenda pela legitimidade de nomeação dos membros do clero para os cargos religiosos, mas antes numa disputa entre os dois maiores potentados da época pela primazia política sobre o Ocidente e o direito a conduzir os destinos da Cristandade.
As consequências do confronto, que se arrastaria de modo mais ou menos inflamado até 1122, marcariam os finais do século XI e todo o século seguinte, ao mesmo tempo que se desencadeavam as primeiras campanhas militares empreendidas sob o pretexto de granjear para a Cristandade a libertação do túmulo de Cristo. As cruzadas, iniciadas em finais do século XI, originavam verdadeiros movimentos coletivos do Ocidente medieval, tendo afinidades com processos análogos, como foi o caso da Reconquista Ibérica. Na Hispânia, o esforço de conquista territorial aos muçulmanos nunca deixara de ocupar um lugar importante no plano da legitimação do prestígio e poder régios, que podiam ser alcançados sem necessidade de embarcar em jornadas aos territórios longínquos da Terra Santa.
Cisma do Ocidente, Reforma Gregoriana, «Querela das Investiduras» e Cruzadas trataram-se, portanto, de elementos centrais no processo de emancipação do poder da Igreja em relação ao Império. No rescaldo da assinatura da Concordata de Worms, em setembro de 1122, o equilíbrio de poderes no Ocidente começou claramente a pender a favor da Igreja, caminhando-se no sentido da centralização do poder da cristandade ocidental numa única autoridade, soberana e livre do controlo de outros potentados e que encontrava o seu expoente máximo na figura do papa, descendente da linhagem de São Pedro e representante supremo de Deus na Terra.
Este princípio de teorização da soberania, a chamada teocracia papal, que concebia a fusão do poder material e do poder espiritual, a favor da dominância deste último, só se efetivaria formalmente com Inocêncio III (1198-1216), mas é fruto de um longo processo que encontra na primeira metade do século XII a sua fase fundamental de consolidação. Esta reconfiguração do equilíbrio de poderes não passa despercebida aos reinos cristãos que, bem conscientes da entidade detentora da primazia política, voltavam o olhar para Roma, onde o sólio pontifício se encontrou durante grande parte do início do século XII ocupado por sumo-pontífices filiados à poderosa ordem cluniacense.
Mas no século XII o declínio de Cluny e do seu modelo monástico entre as altas esferas começa a tornar-se tangível e abre caminho à alteração de poderes na cúria papal e no ocidente cristão, mediante o processo de multiplicação de novas correntes associadas a experiências de vida eremítica, que tinham começado a proliferar a partir da segunda metade do século XI em França e Itália, a par da emergência da Ordem de Cister. Esta nova Ordem converter-se-á numa importante via de difusão da reforma monástica em curso. É nesta Europa em transformação que as ordens religiosas militares, como a Ordem do Templo, conquistam o seu lugar como elementos-chave da atuação política do maior potentado do período. O papa acompanhava atentamente, a partir de Roma, as dinâmicas internas das pequenas unidades políticas em desenvolvimento, de modo a controlar a emergência de possíveis ameaças ao seu poder.
Encontramos desde cedo presentes em território português, tanto a Ordem do Templo como a Ordem de Cister, ambas ocupando um lugar importante na política desenvolvida por D. Afonso Henriques, que desde o início procurou associar a sua demanda pelo reconhecimento papal, às correntes e tendências religiosas em ascensão. Os templários contaram desde cedo com o favor da liderança portucalense. Tal como Afonso I de Aragão, o príncipe português adotou uma política de doações às ordens religiosas militares. No ano de 1129 confirma a entrega da importante posição estratégica de Soure à Ordem do Templo, que nas décadas seguintes desempenharia um importante papel nas conquistas de Santarém e Lisboa.
Não menos relevante neste contexto é o apoio que o dux concede ao ideal da «vida apostólica», fruto da reforma monástica de Cister que procurava, entre outros elementos, o retorno à intervenção no século, de que se tinha afastado o clero catedralício de Cluny. Os monges de Cister desempenhavam funções diplomáticas ao serviço quer do poder papal, quer dos monarcas da cristandade, sendo enviados como representantes, legados e intermediários entre as autoridades dos reinos e a Santa Sé.
A importância de Santa Cruz de Coimbra, cuja história é quase tão antiga quanto a da própria nacionalidade, não se limitaria apenas ao facto ter sido aí o local eleito por D. Afonso Henriques para começar a construção da sua corte régia. Para além de Santa Cruz se ter afirmado enquanto principal centro do conhecimento no interior das fronteiras portuguesas no século XII, cabendo aos monges regrantes a produção de narrativas de grande importância no reconhecimento de iure do reino português perante o papado, é a este mosteiro que se associam alguns dos mais importantes conselheiros e «agentes» ao serviço do dux português, como D. Telo, o seu fundador, São Teotónio, o seu primeiro prior, e acima de tudo, D. João Peculiar que desde cedo associara a sua causa à ambição pessoal do líder português.
Se a responsabilidade temporal era de D. Afonso Henriques, a D. João Peculiar cabia a responsabilidade em todas as questões do foro religioso. Sagrado bispo do Porto em 1137, Peculiar ver-se-ia elevado logo no ano seguinte à função arcebispal da arquidiocese de Braga, posição a partir da qual, com base numa teorização e argumentação bem fundamentadas, conquistaria junto das mais influentes personalidades do século XII, o apoio necessário ao projeto político autonomista, ao qual a Providência divina reconhecia legitimidade. Era necessário deixar que essa vontade divina e que os próprios atributos militares de D. Afonso Henriques se expressassem, não só perante o papado, mas diante de toda a Cristandade. Um feito de armas grandioso consubstanciado na conquista estratégica de uma grande cidade, como Lisboa, ao infiel preencheria plenamente esses requisitos. Mas tamanho projeto implicaria um esforço coletivo coordenado e seria merecedor de um planeamento detalhado em todas as vertentes.
Aproximava-se o momento de pôr a diplomacia ao serviço do poder, e D. Afonso Henriques, rodeado de homens de confiança conhecedores dos meandros da política da época, encontrava já estabelecidas as bases fundamentais para começar a desenvolver este seu empreendimento. Acima de tudo, estava bem consciente das entidades que reuniam o poder para catapultar o seu pequeno território, isolado no extremo mais ocidental da Cristandade, de um condado disputado a um reino reconhecido. Era necessário que os seus triunfos militares se equiparassem às conquistas diplomáticas de D. João Peculiar, pois a guerra far-se-ia em duas frentes: no plano militar e, acima de tudo, no plano político e eclesiástico.
A Cristandade tinha o olhar voltado para a Península Ibérica, onde desde 1139 assistia aos sucessivos triunfos do imperador leonês no avanço da ofensiva “reconquistadora” contra o mundo muçulmano, fragilizado pelas disputas almorávidas. O rei de Leão e Castela passa à ofensiva entre 1139 e 1144 com êxitos retumbantes sobre forças e praças muçulmanas e as suas sucessivas vitórias militares precipitam D. Afonso Henriques a procurar ainda em 1142, sem grande preparação prévia, conquistar a cidade de Lisboa, visto que não contava ainda com o prestígio de grandes conquistas e tardava a estabelecer laços matrimoniais, como fizera o seu primo leonês com Berengária de Barcelona, logo em 1128.
Essa constatação deve ter levado o comando português a orientar todos os seus esforços para o planeamento de um feito de armas com o aparato daquele que viria a verificar-se em 1147, mas desta feita com um conhecimento muito mais profundo da realidade que defrontavam e acima de tudo, com apoios de peso que seriam conquistados, não pelas armas, mas por via de uma movimentação bem ponderada no plano diplomático. Talvez em 1142 encontremos não uma primeira tentativa de conquista da cidade, mas antes um empreendimento promovido pelo príncipe português com o objetivo de testar as defesas muçulmanas, estudar o terreno e atrair a atenção de intervenientes do exterior. Mesmo não se tendo conquistado a cidade, a riqueza de Lisboa atrairia muitos cruzados que voltariam mais tarde a participar no cerco de 1147.
O verão do ano de 1143 ficou marcado pela chegada à Península Ibérica do cardeal Guido de Vico. A terceira visita do legado apostólico decorria num momento politicamente conturbado para a Santa Sé. O Concílio de Latrão (1139) que comemorara o fim do Cisma, estivera longe de pôr fim à instabilidade em Roma, onde às vésperas da sua morte, Inocêncio II se via política e militarmente pressionado.
Numa lógica oposta à que orientava o projeto político de Afonso Henriques, Rogério II da Sicília aproveitando-se, por um lado, da proximidade geográfica a Roma, onde recentemente tinha sido criada uma comuna hostil ao pontífice e, por outro, do desinteresse do novo imperador germânico, Conrado III (1093-1152), face a questões relacionadas com a proteção papal, envereda por uma lógica de conflitualidade com o poder estabelecido e ataca a cidade de Roma, em 1139. Inocêncio II foi capturado na batalha de S. Germano, sendo forçado a reconhecer a Rogério o título régio.
A instabilidade provocada pelo episódio abala fortemente a soberania do poder papal, que a Igreja procuraria nos anos seguintes reforçar perante as monarquias europeias. A vinda de Guido de Vico à Península Ibérica visava não só reunir apoios políticos e financeiros para Inocêncio II (1130-1143), mas também atender a problemáticas de natureza eclesiástica relacionadas com a luta pelo primado da Hispânia e com as questões resultantes do complexo processo de definição das fronteiras diocesanas.
Situada no extremo ocidental da Europa, a Península Ibérica contava com uma particularidade vantajosa para o papado: constituía um meio privilegiado de acesso aos metais preciosos provenientes de África e do Oriente, através do mundo muçulmano. Contudo, o pagamento de elevadas quantias à Santa Sé por parte dos mosteiros ibéricos e a questão da isenção diocesana depressa se converteram em focos de quezília com Roma, já que as políticas centralizadoras que tinham resultado da Reforma Gregoriana, e que desde então a Igreja se tinha esforçado por implementar, promoviam o abandono do modelo organizacional assente na autonomia jurisdicional de cada bispo, que se encontrava ainda profundamente enraizado na tradição eclesiástica ibérica.
A vinda de Guido de Vico tinha, portanto, propósitos que visavam a garantia da manutenção da influência política e religiosa do papado sobre a Península Ibérica. Mas D. Afonso Henriques tinha planos para capitalizar a favor do seu objetivo autonomista a visita do legado pontífice, que se dirige primeiro a Portugal.
O ano de 1143 é frequentemente apontado como o marco que assinala o nascimento da nacionalidade. Não é, contudo, o reconhecimento da realeza de D. Afonso Henriques por parte do imperador leonês, pacificamente acordada em outubro desse ano, em Zamora, sob mediação de Guido de Vico, que determina o momento decisivo no processo de construção de uma independência política, mas antes a cisão com o estado de dependência jurídica em que o reino de Portugal se mantinha perante Leão e Castela. No dia 13 de dezembro de 1143, D. Afonso Henriques, que antes do encontro com Afonso VII em Zamora prestara homenagem à Santa Sé em Coimbra na presença do cardeal Guido de Vico, enviou à cúria pontifícia D. João Peculiar com a sua carta de vassalagem, a Claves Regni Celorum. O príncipe português prometia assim ao papado o pagamento de um censo anual e sublinhava não reconhecer autoridade a mais nenhum poder secular ou eclesiástico. D. Afonso enveredava pela mesma estratégia anteriormente adotada por Sancho Ramirez de Aragão (1068), Bernardo II de Besalú (1077) e Berenguer Ramon II (1090), que tinham recorrido ao estabelecimento de ligações de vassalagem ao papa como meio de autonomização dos seus recém-formados reinos.
A resposta à Clavis Regni Celorum chegaria apenas em maio de 1144, através da bula Devotionem Tuam, mediante a qual Eugénio III (1145-1153) oficializava a vassalagem do líder português à Santa Sé. A confirmação da carta de juramentum pelo papa consumava um triunfo importante para D. Afonso Henriques, que assim furtava à autoridade jurídica do imperador leonês não só os territórios já por si dominados, mas também os que viria nos anos seguintes a conquistar. No entanto, o mesmo papa que o tinha reconhecido enquanto miles Santi Petri referia-se-lhe apenas como Filio Ilustri Portugalensium Duci e não como rex. Os canonistas da cúria papal tinham progressivamente adotado os rigorismos de São Rufo de Avinhão, o que se consubstanciara num aumento da importância atribuída às definições precisas dos títulos nobiliárquicos, e num endurecimento dos parâmetros mediante os quais esse título era atribuído.
Para além disto, por 1143 o maior triunfo militar de D. Afonso Henriques até então, a vitória em Ourique (1139), não tinha resultado numa conquista territorial para a Cristandade. O príncipe português teria de esperar até 1179 para lhe ser visto reconhecido oficialmente o título régio pela bula Manifestis probatum, mas esse título de pouco lhe serviria se em 1143 não tivesse dado um passo crucial ao subtrair a sua unidade política ao domínio feudal do imperador leonês, fazendo-se vassalo do maior potentado do período. A Santa Sé, por sua vez, intervinha ativamente a favor da reconfiguração política que se operava na Península Ibérica, onde por meados do século XII se consumaria o estilhaçamento de mais um império em várias unidades políticas: Leão e Castela, Aragão-Catalunha, Navarra, sultanato de Granada, e Portugal.
A notícia da queda de Edessa às mãos do governador de Mossul no dia 24 de dezembro de 1144, ao fim de três meses de cerco, chegaria à Europa trazida por mercadores italianos e por peregrinos que no verão de 1145 regressavam da Terra Santa. Se inicialmente a perda do principado não tem grande eco no Ocidente cristão, em outubro de 1145, quando o relato dos massacres de inúmeros cristãos chega ao conhecimento do pontífice em todo o seu detalhe, por intermédio de uma delegação de bispos arménios, o papa Eugénio III toma uma posição.
À data da chegada destas notícias, encontravam-se presentes na cúria pontifícia alguns emissários régios de Afonso VII de Leão, que se tinham deslocado a Roma para apresentar queixa contra a recusa de D. João Peculiar em reconhecer o primado de Toledo. Os legados régios teriam igualmente alertado o pontífice para a crítica situação em que se encontravam os reinos cristãos em território ibérico, perante o avanço da ofensiva dos Almóadas, e tinham saído de Roma na posse de uma bula papal que prometia a indulgência a todos os que tomassem parte na guerra contra os muçulmanos na Península Ibérica. E assim, a partir de 1145 o imperador leonês inicia a sua cruzada no vale do Ebro, pondo cerco a Córdova, em maio de 1146, e conquistado Calatrava em janeiro de 1147.
Pouco depois da partida dos emissários de Afonso VII, Eugénio III publica, no dia 1 de dezembro, a encíclica Quantum Praedecessores, dirigida ao rei de França, que anuncia publicamente a sua intenção de participar na cruzada à Terra Santa numa assembleia de barões em Bruges, no dia de Natal de 1145, decisão que não é recebida com agrado por parte do seu conselheiro mais próximo, o abade de S. Denis, Suger. Mas a adesão à ideia de participação numa nova Cruzada revelou-se dececionante o que obrigou a que em março de 1146 o papa publicasse nova Quantum Praedecessores, e apelasse à sua divulgação por parte de uma figura de incontestável autoridade na Cristandade ocidental: Bernardo de Claraval.
É ainda no ano de 1145 que se sabe em Santa Cruz de Coimbra da queda do principado de Edessa às mãos dos muçulmanos, e do início da pregação de uma Segunda Cruzada por Eugénio III. O arcebispo de Braga, D. João Peculiar, tendo abandonado a corte pontifícia em Roma, onde se dirigira inicialmente entre 1143-1144 para solicitar a Lúcio II a resposta ao pedido de vassalagem de D. Afonso Henriques, demorara-se antes do seu regresso a Portugal numa importante visita à corte de Amadeu III de Sabóia. Aí apresentara a proposta de casamento de Afonso Henriques com a princesa Mafalda. É já em maio de 1146 que voltamos a ter notícias do arcebispo de Braga em Portugal, momento de que data também a primeira notícia de D. Mafalda de Sabóia no reino. D. João Peculiar teria integrado o séquito que acompanhou a princesa até Portugal, onde irá casar com D. Afonso Henriques em abril desse ano, em Coimbra.
O ponderado enlace com D. Mafalda não poderia ter decorrido em melhor momento para o rei português. O consórcio consumava-se num cenário em que os preparativos para a Segunda Cruzada ocupavam as atenções imediatas das poderosas monarquias cristãs, as mesmas com as quais D. Afonso Henriques forjava agora estreitas relações fora do círculo das casas reinantes ibéricas. A decisão revelar-se-ia a curto prazo prolífica para o líder português em múltiplas vertentes. D. Mafalda era filha de um vassalo do imperador germânico e prima do rei de França, Luís VII. O futuro reino de Portugal vinculava-se deste modo aos poderes mais próximos do centro da Cristandade, à terra onde vivera o mítico imperador Carlos Magno.
O matrimónio do príncipe português para além de ter sido encarado pelas cortes europeias como uma conquista prestigiante para o futuro reino de Portugal, possibilitou a D. Afonso Henriques uma associação ao movimento cruzadístico promovido por Bernardo de Claraval, já que Amadeu III, tal como o monarca francês, revela-se um entusiasta participante na Cruzada. Por outro lado, tinha permitido ao príncipe português dar mais um passo no sentido do distanciamento político face ao imperador leonês, tendo determinado a aproximação de D. Afonso Henriques ao único verdadeiro imperador, cujo título resultava da translatio imperii.
A conjuntura geopolítica progressivamente fragmentada no centro da Europa às vésperas do início da Segunda Cruzada não favorecia o imperador germânico, progressivamente pressionado pelo monarca francês. Conrado III tinha interesses evidentes em que o rei português conquistasse a sua autonomia em relação a Afonso VII, já que essa autonomia consumaria de forma irreversível a fragmentação da Península Ibérica em cinco pequenas unidades políticas, e determinaria o desaparecimento do potentado do Império Hispânico, um aliado potencial de Luís VII, a que o rei de França efetivamente viria a recorrer mais tarde, procurando associar-se ao monarca leonês por via do matrimónio com a sua filha, Constança de Castela.
O casamento de D. Afonso Henriques com a filha de Amadeu III consumava-se no mesmo dia em que Bernardo de Claraval pregava em Vézelay a Cruzada. A ligação portuguesa àquele abade, oriundo de uma família nobre da Borgonha, remontava a 1138, ano em que terão ocupado o mosteiro de São João de Tarouca monges vindos da abadia francesa, provavelmente por influência de D. João Peculiar. Não teria passado despercebido ao arcebispo de Braga o ascendente do abade de Claraval entre as altas esferas do poder, nas numerosas ocasiões em que ao longo da década de 1130 frequenta a cúria pontifícia pela mesma altura que Bernardo. Peculiar terá favorecido perante ele a imagem do cristianíssimo príncipe português, que desde cedo acolhera em Portugal a observância cisterciense e promovera a criação de eremitérios, ao mesmo tempo que se empenhava na luta contra o infiel. O resultado das visitas de Peculiar à cúria romana refletir-se-á na multiplicação do número de casas cistercienses em território português a partir de 1140 e nas importantes doações régias às Ordens Militares
As notícias da retumbante pregação de Bernardo perante o monarca francês e a sua corte, na abadia cluniacense de Vézelay, espalham-se com a eficácia pretendida pela Europa, chegando rapidamente ao longínquo reino de Portugal, onde são acolhidas com o maior agrado pelo arcebispo de Braga. Pouco tempo depois partia do território português um mensageiro, possivelmente o próprio irmão do rei que tinha intenções de partir com os cruzados para combater na Terra Santa, ou um templário eleito por D. Afonso Henriques, com uma carta enviada pelo rei português a S. Bernardo. O abade de Claraval estava nos territórios do Norte, onde se demorara entre julho de 1146 e janeiro de 1147 em missão pelas terras do Reno e dos Países Baixos. Aí o encontra o enviado português, que faria chegar sem demora a Portugal a resposta do cisterciense. O abade, ao corrente de «todas as coisas necessárias», reúne um exército para ir em auxílio do rei dos portugueses que em menos de um mês concretizaria por fim a conquista da opulenta cidade de Lisboa.
Costuma-se dizer que Portugal foi construído pela vontade política de um povo e como se sabe, o título de rei atribuído a D. Afonso Henriques aparece, pela primeira vez, em documento autêntico, datado de 10 de abril de 1140. No entanto, a Santa Sé só o reconheceu como rei e Portugal como reino, passados 39 anos, ou seja, em 23 de maio de 1179, o dia que hoje celebramos. Perante este facto, muitos de nós têm-se interrogado por que razão a Sé Apostólica retardou tantos anos o reconhecimento desse título, seis anos antes do monarca português morrer. É óbvio que se torna difícil apontar, com toda a segurança, uma causa determinante de tão importante e tardia decisão pontifícia.
Mas sublinhemos um acontecimento bastante significativo. Tem de ser relacionado o envio da bula de Alexandre III com o testamento do príncipe de Portugal. O testamento régio é feito em fevereiro de 1179. Três meses depois, ou seja, em 23 de maio de 1179, foi-lhe concedida a bula de reconhecimento de título de rei. Parece haver, portanto, uma estreita relação entre os dois acontecimentos. Tanto mais que no testamento manda distribuir vinte e dois mil maravedis, guardados no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra aos pobres e à própria Igreja nas suas instituições.
O silêncio pontifício que cai sobre os 39 anos talvez ainda exija uma profunda investigação. Muitos apontam para a necessidade de ter de ser criado um facto novo que levasse a Santa Sé a repensar a sua posição de tantos anos. E essa novidade que motivou Alexandre III a reconhecer D. Afonso Henriques como rei pode ter estado no pormenor de o monarca decidir duplicar o montante do censo, num total de dois marcos de ouro. E a partir desse momento, desapareceram as objeções da Cúria ao reconhecimento do título de rei. É incontestável que a oferta régia precedeu a concessão do título de rex. E não há dúvida que a quantia adequada é o facto novo.
A bula Manifestis probatum é um momento importante no processo de afirmação de Portugal como nação independente. A bula reconhecia no primeiro rei português todas as capacidades para cumprir os seus deveres e responsabilidades para com os seus súbditos. Para lá da força das armas como vetor de legitimidade do seu poder, D. Afonso Henriques via expressa no documento pontifício toda a sua legitimidade como soberano de Portugal e dos portugueses.
1 Professor Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Investigador do Centro de História da Universidade de Lisboa.