Portugal Medieval. Do Condado ao Império (1096 -1495) – Recensão Crítica

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OLIVEIRA, António Resende de; MONTEIRO, João Gouveia – Portugal Medieval. Do Condado ao Império (1096-1495), Lisboa, Tribuna da História, 2023, 406 págs.

Bernardo Vasconcelos e Sousa 1

O livro Portugal Medieval. Do Condado ao Império (1096-1495), da autoria de António Resende de Oliveira e João Gouveia Monteiro, constitui uma “síntese didáctica e panorâmica sobre a história medieval portuguesa, considerada na sua longa duração”, como afirmam os Autores no “Prefácio à Edição Portuguesa”. Edição portuguesa porque a obra foi primeiro publicada em Espanha, em 2018, pela prestigiada editora da Universidade de Granada.

Escrito inicialmente para dar a conhecer melhor aos meios académicos espanhóis a história medieval do seu único vizinho ibérico, o livro é portador de informação e de interpretação actualizadas sobre a nossa Idade Média, tanto para estudantes universitários como para um público português mais alargado e com interesse pela História. De facto, as últimas décadas, sobretudo a partir dos anos Oitenta do século passado, conheceram uma forte e profunda renovação da historiografia portuguesa, em que a época medieval não foi excepção e de que António Resende de Oliveira e João Gouveia Monteiro são relevantes expoentes.

Não é aqui o lugar apropriado para descrever os seus vastos e excelentes currículos. Mas, ainda assim, importa dizer que os dois Autores são reputados medievalistas, professores da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, uma Escola de grandes e boas tradições nos estudos sobre a Idade Média. Além disso, ambos foram orientados nas suas teses de Doutoramento pelo Professor José Mattoso, de quem são discípulos directos e a cujo Mestre, de resto, dedicam a obra agora lançada a público.

Este livro tem como balizas cronológicas, logo expressas no subtítulo, os anos de 1096 e de 1495. A primeira destas datas remete para a atribuição por Afonso VI, rei de Leão, do Condado Portucalense a Henrique da Borgonha, casado com D. Teresa, uma filha bastarda do monarca. A segunda data, 1495, é o ano da morte de D. João II e do início do governo de D. Manuel I. Esta “longa Idade Média” portuguesa, que se estende por quatro séculos até ao final do reinado do Príncipe Perfeito, encontra-se dividida em duas Partes, num corte cronológico definido pelo final do governo de D. Dinis, em 1325. António Resende de Oliveira e João Gouveia Monteiro seguem aqui a periodização proposta por José Mattoso para o que poderemos considerar uma primeira fase da monarquia portuguesa, desde o Condado Portucalense até ao fim do primeiro quartel do século XIV. Este foi o período de autonomização face a Leão e à Galiza, de fundação do reino, da sua estabilização e viabilização. Legitimada a realeza pelas vitórias militares e conquistas dos primeiros monarcas, a Coroa, de matriz guerreira, foi cumprindo um processo de expansão territorial através da Reconquista, mas também de delimitação e fixação de fronteiras com o vizinho castelhano com o Tratado de Alcanizes, de 1297, de adopção do Galego-Português como língua da chancelaria régia no final do século XIII (em substituição do Latim), de criação do Estudo Geral, em 1288-1290, a Universidade portuguesadestinada à formação de especialistas na produção legislativa e nas tarefas políticas da administração, ocorrências estas a que poderemos juntar a progressiva adopção de medidas com vista a uma crescente especialização, agilização e eficácia da política régia.

Em suma, a formação e a consolidação de Portugal como entidade política independente – como reino – foi, portanto, um processo multifacetado, complexo e prolongado no tempo, mas que estava delineado nos seus traços essenciais quando D. Dinis morreu, em 1325.  Entre esses traços essenciais, assinalem-se, pois: um monarca, Afonso Henriques, que, por sua iniciativa, fundou um reino e uma dinastia em meados do século XII; acrescente-se a conquista e a fixação de um território próprio que estavam consumadas no final do século XIII; sublinhe-se igualmente a afirmação da Coroa como polo central de poder que se apresentava situado acima dos poderes concorrentes da nobreza e do alto clero, nos séculos XIII e XIV; junte-se a existência de uma língua própria e distinta de outras, com a dignidade do seu uso pela chancelaria régia desde o final do século XIII; e, como que envolvendo todos estes passos, destaque-se o aperfeiçoamento da capacidade de formação e de operacionalização de um conjunto especializado de oficiais ao serviço da administração central, durante as centúrias de Duzentos e Trezentos. Se a estas realizações políticas e culturais somarmos a diversidade e complementaridade, tanto regional como social, do reino, com um Norte essencialmente cristão, guerreiro e rural, e um Sul de presença islâmica mais duradoura, comercial e urbano, completa-se o quadro. Um Portugal com uma rede urbana que já ligava, articulava e integrava aquelas diferentes componentes, assim se explicando, nos seus elementos fundamentais, a razão pela qual teve origem e, sobretudo, encontrou viabilidade, ao longo de séculos e para além da Idade Média, o reino mais ocidental da Península Ibérica.

Este aspecto é tanto mais relevante quanto o mapa político medieval era muito diferente daquele que observamos nos nossos dias. Hoje, olhando para um mapa da Península, vêem-se duas entidades políticas com a forma de Estado: Portugal e Espanha. Ora, na Idade Média a situação era bem diversa. Existiram cinco reinos cristãos peninsulares: Leão e Castela, definitivamente unidos sob a mesma Coroa a partir de 1230, Aragão, Navarra e Portugal. Isto para além da multissecular presença islâmica, de quase oitocentos anos, desde 711 até 1492, data da queda do Reino de Granada. O término da Reconquista ibérica neste último ano e a afirmação da hegemonia castelhana, sobretudo a partir dos Reis Católicos, no derradeiro quartel do século XV, haviam de alterar duradouramente o panorama da geografia política hispânica. (Uma alteração que ainda hoje se repercute, como é sabido, na situação interna da Espanha).

A Primeira Parte do livro, da autoria de António Resende de Oliveira, está organizada em três capítulos. O primeiro, intitulado “Do Condado ao Reino”, cobre o período de 1096 a 1143, tratando da autonomização do espaço que viria a ser o português, face a Leão e à Galiza. É dado destaque ao longo processo que conduziu da auto-intitulação de Afonso Henriques como rei, em 1139-1140, até ao reconhecimento dessa condição por Afonso VII de Leão e Castela, em 1143, e à confirmação papal de Alexandre III, pela bula Manifestis Probatum, em 1179, quatro longas décadas depois daquele acto unilateral. O segundo capítulo incide sobre “A formação do território”, abarcando as conquistas e a expansão territorial de Norte para Sul, até à fixação da fronteira com Castela, em 1297, ao mesmo tempo que se iam implantando e organizando os diferentes poderes – régio, senhorial laico ou eclesiástico, e concelhio. O terceiro capítulo versa sobre o que é designado como “A construção do Estado”, com a afirmação do poder da Coroa, sobretudo a partir de D. Afonso III e até ao referido corte cronológico de 1325, quando morre D. Dinis e estão consolidados os alicerces da construção de Portugal. Neste processo teve papel catalisador o dinamismo de um mundo urbano em franco desenvolvimento, com grupos sociais ligados a uma acentuada diversificação das actividades económicas e com interesses e projectos próprios.

A Segunda Parte do livro, a cargo de João Gouveia Monteiro, abrange o período que vai de 1325 a 1495, como já foi referido. Também dividida em três capítulos, o primeiro lança uma interrogação: “Crescer em tempo de crise?”. Analisa-se o contexto da chamada “crise geral do século XIV”, com as respectivas manifestações na conjuntura política, até 1383, ano da morte de D. Fernando e do fim da primeira Dinastia. O capítulo seguinte desta Segunda Parte, intitulado “A renovação joanina”, começa com a crise dinástica aberta com o final do reinado fernandino e com as condições em que o trono deveria ser transmitido à sua filha Beatriz, casada com Juan I de Castela. Segue-se a análise dos acontecimentos de 1383-1385 que conduziram D. João, Mestre da Ordem Religiosa e Militar de Avis, ao trono de Portugal, dando assim início à Segunda Dinastia, no que foi uma autêntica “refundação do reino”. Ou, se se preferir, uma renovação que, como é citado no livro (pág. 193), o cronista Fernão Lopes, na Primeira Parte da sua Crónica de Dom João I, (cap. 163) descreveu “com ousadia de falar, como quem brinca, por comparação fazemos aqui a sétima idade [do mundo], na qual se levantou outro mundo novo e uma nova geração de gentes”. E acrescentou Fernão Lopes: “Porque filhos de homens de tão baixa condição que não cumpre dizer, por seu bom serviço e trabalho neste tempo foram feitos cavaleiros, chamando-se logo de novas linhagens e apelidos”. Este capítulo termina com os nefastos acontecimentos que culminaram na Batalha de Alfarrobeira, em 1449, na qual se enfrentaram D. Afonso V e um sector da nobreza encabeçado pelo Duque de Bragança, de um lado, e, do outro, o ex-Regente do reino, tio e sogro do monarca, o Infante D. Pedro, e em que este teve uma pesada derrota e encontrou a morte. O terceiro e último capítulo desta Segunda Parte vai de meados do século XV até à morte de D. João II, em 1495. A dialéctica do título, “Um futuro com perfume de passado”, dá conta dos aspectos contraditórios destes tempos em que uma época chegava ao fim e outra começava a desbravar-se. É o que está patente numa como que sobreposição entre o “antigo” e o “moderno” na política de D. Afonso V, entre a constituição de novas Casas senhoriais, por um lado, e os primórdios da construção do Estado Moderno, por outro; entre a ressurgência de um certo ideal de cruzada, agora voltado para o Norte de África, por um lado, e, por outro, o olhar lançado para além das constrangedoras e perigosas fronteiras de um reino entalado entre Castela e o mar, vendo como o oceano não era uma barreira, antes seria um caminho. O quadro da acção dos portugueses deixaria de ser quase só o palco peninsular para passar a ser o que alguns autores haveriam de chamar a “primeira globalização”. Como é afirmado na página 191, este foi um tempo que “acabou por lançar Portugal num período substancialmente novo da sua história”.

Se o fio condutor da narrativa do livro é essencialmente o da sequência política, embora sem perder de vista aspectos sociais e económicos relevantes, uma temática há a que é dado destaque em todos os capítulos e que importa sublinhar pela sua raridade em obras deste tipo. Referimo-nos às questões culturais, sobretudo relacionadas com a cultura letrada, principalmente a literária, da poesia trovadoresca (tanto lírica como satírica) à prosa, ou da cronística régia aos livros de linhagens repletos de genealogias da nobreza. E aqui a cultura não surge como uma espécie de adorno, para não se dizer que ficou esquecida. A produção cultural é apresentada e exposta em linha com a conjuntura em que se enquadra, ajudando a explicar contextos e a documentar interpretações propostas, quer de natureza especificamente cultural, quer de âmbito mais vasto, como, por exemplo, na relação com o exercício de poderes, sejam eles o poder régio, o nobiliárquico ou o eclesiástico.

Além de um texto bem escrito, extenso mas que se lê sem esforço e, até, com uma crescente curiosidade para saber quais as consequências de cada facto ou fenómeno relatado, para saber qual a interpretação avançada, quais as reflexões propostas, quais as conclusões sugeridas, este livro dispõe de um amplo conjunto de elementos suplementares para a análise, sistematização e interpretação históricas. São vários os mapas, as tabelas e os esquemas genealógicos que permitem a visualização e a percepção do que, sem este tipo de tratamento metodológico, seriam referências dispersas e desarticuladas entre si. Nos Anexos inclui-se também uma sempre útil lista dos “Reis de Portugal” com as datas extremas dos respectivos reinados, uma “Cronologia da História Medieval de Portugal” entre 1064 e 1530, um utilíssimo “Glossário” onde se dá o significado de termos e se explicam conceitos regularmente usados na historiografia sobre a Idade Média, e, por último, uma extensa e actualizada bibliografia que não só serve de suporte à obra como fornece indicações para quem queira profundar um tema geral ou procure estudos especializados acerca de determinado assunto. Do mesmo modo, os “dossiers iconográficos”, incluídos no final de cada uma das duas Partes em que se divide a obra, apresentam excelentes imagens que não são meras ilustrações, no sentido decorativo que por vezes é dado às reproduções fotográficas coloridas. Tais imagens incluem materiais explicativos que ajudam o leitor e funcionam como elementos abonatórios das análises e das interpretações propostas.

Uma palavra apenas para o cuidado posto nesta edição, desde a escolha dos Autores até à linha gráfica, tão atraente quanto sóbria. A Tribuna da História é uma editora que no quadro da grande e forçada concentração do nosso mercado editorial tem sabido e conseguido resistir à ditadura dos títulos fáceis e rapidamente descartáveis. De facto, a editora tem já um vasto e diversificado catálogo com um conjunto de colecções em que se destacam obras de temática histórica com muita qualidade. O Doutor Pedro de Avillez, que dirige a Editora, tem sido capaz de manter o elevado nível dos livros que publica, convidando e sabendo escolher autores de reconhecido mérito e competência que garantem o interesse e a validade cultural das obras que dá à estampa. Isso mesmo volta a acontecer agora, com este Portugal Medieval, de António Resende de Oliveira e João Gouveia Monteiro. Os votos que se impõem, a este respeito, são os de que, nesta sua nova fase e tal como afirma na contra-capa do livro, a Tribuna da História continue por muitos e bons anos a publicar obras que “reflectem preocupações culturais, políticas e religiosas pluralistas, sempre com actualidade, rigor e inovação”.

Muito mais se poderia dizer acerca do livro. Mas nada do que se acrescentasse atingiria o gosto e o ganho intelectual que a leitura da obra proporciona. O que vale mesmo a pena é, pois, saborear a leitura deste Portugal Medieval que nos é facultado na escrita rigorosa e límpida de António Resende de Oliveira e de João Gouveia Monteiro.

 1 Bernardo Vasconcelos e Sousa. Instituto de Estudos Medievais. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas-UNL.

O Prof. Doutor Bernardo Vasconcelos e Sousa no uso da palavra.