Discurso do Presidente da Direcção da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, Dr. José Ribeiro e Castro.
Senhor Presidente da República,
Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhora ministra da Defesa Nacional,
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça,
Senhora Procuradora-Geral da República
Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa,
Senhores Chefes do Estado-Maior dos ramos das Forças Armadas,
Senhor Dom Duarte Pio, Duque de Bragança, em cuja pessoa saudamos as três dinastias portuguesas e toda a História de Portugal,
Senhoras e Senhores Embaixadores,
Senhora Presidente da Assembleia Municipal de Lisboa,
Senhores Vereadores,
Senhor Presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior,
Senhores dirigentes associativos,
Demais autoridades civis e militares,
Portugueses,
Talvez alguns ainda se lembrem, no ano passado, de uma senhora, uma rapariga da minha idade, que, quando eu vinha a pé para aqui se aproximou, ali no Marquês, e interpelou-me a saber se eu era “o Ribeiro e Castro das bandas”. Encontrei-a outra vez, hoje. Estava à espera de a encontrar.
– Ora viva, minha senhora! Está boa? Ainda bem que a vejo. Veio para as bandas? Olhe que é só à tarde.
– Não, agora, não venho para as bandas. Também tinha esperança de o encontrar. Hoje, vim para as cerimónias.
– Para as cerimónias? Muito me conta. Então, porquê?
– Ficou-me na cabeça aquilo dos 900 anos de que me falou. E, como não fui às cerimónias, pensei que poderia voltar a falar hoje outra vez. A televisão não deu nada. E, assim, ia ouvir.
– Sim, vou falar dos 900 anos de Portugal. É um projecto que temos e em que acreditamos muito.
– Ah! Ainda bem. Assim, vou às cerimónias consigo, se não se importa. Posso assistir?
– Pode. Todo o gosto. Arranjamos-lhe um lugar. Viemos a conversar pela Avenida abaixo. Estava inquieta com os netos. Só lhe falavam de quererem ir para fora, verem a vida muto difícil por cá. Contou que o filho e a nora os encorajavam a partir, quando acabassem de estudar. Ela não queria ficar sem conhecer os bisnetos, “se lá chegasse”. Quase a chegarmos cá em baixo, interpelou-me:
– Deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Um amigo meu, que o conhece, contou-me que lhe ouviu a teoria de que Portugal existe por acaso.
– Não é bem isso que eu digo. E nem é tanto quanto a Portugal. Penso que, muitas vezes, as coisas mais extraordinárias, que mais nos encantam e mais gostamos, são coisas que acontecem por acaso. Se resultam de um plano nosso, nele aplicámos o nosso trabalho e inteligência, e se realiza mesmo bem, isso não nos surpreende – fizemo-lo – e claro que gostamos. Mas, se vem de algum acaso e é melhor do que alguma vez pudéssemos imaginar possível, deslumbramo-nos, rendemo-nos, apaixonamo-nos mesmo. Diga-me uma coisa: é casada?
– Sou viúva. O meu marido morreu há cinco anos.
– Oh! Que pena. E como é que se conheceram? Andou atrás dele? Ou ele atrás de si?
– Não. Fui uma vez à Nazaré, veio uma onda muito grande, que me enrolou, e ele segurou-me. Abraçou-me e, olhe, nunca mais deixámos de nos abraçar. Na verdade, foi por acaso.
– Isso acontece muitas vezes na nossa vida. E nos países também. Temos só de estar abertos a ver e a entender.
Minhas Senhoras,
Meu Senhores,
O amigo desta senhora teria talvez ouvido uma ideia que tenho sobre o Brasil, de ser “um fruto do acaso e do génio português”. Acreditemos nele ou não, há o acaso de Pedro Álvares Cabral de, indo para a Índia, ter encontrado o Brasil. E há o acaso de Napoleão (devíamos agradecer), que, ao invadir Portugal, empurrou a Coroa portuguesa para o Brasil, num facto ímpar na história de qualquer país, o que consolidou a unidade do Brasil num período marcante e decisivo da sua história e determinaria a sua independência, como Brasil inteiro.
Em boa medida, podemos dizer o mesmo de Portugal: somos “um fruto do acaso e do génio português”. Onde mais conseguimos intuir, perceber, esse extraordinário poder do acaso, é nas coisas que são tão grandes, tão grandes que nenhum poder nosso poderia tê-las feito. São tão vastas, tão belas, tão variadas que estão para além da capacidade de quem quer que seja. Os países são candidatos de primeira linha a essa explicação, entre eles certamente o nosso país Portugal. São acontecimentos, mais do que feituras. Os múltiplos fios (étnicos, religiosos, geopolíticos, culturais…) que nos tecem e as circunstâncias que ditaram e marcaram tempos historicamente decisivos são frequentemente servidos pelo acaso, mesmo quando, depois, o acaso tem de ser alimentado pela tenacidade e pela bravura. Tivemos muitos momentos assim: na fundação, na crise de 1383/85, na dinastia dos Filipes e na Restauração, nas duríssimas Invasões Francesas. Mas o que teria sido de nós, se a peste não tivesse forçado D. João I de Castela a levantar o cerco a Lisboa, em 1384?
A verdade é que levamos 900 anos deste acaso prodigioso, longevidade de muito poucos no mundo. Como diz José Mattoso, esse nosso grande professor, a respeito do século XII em que marcamos o nosso começo, não há um dia, um ano, um só facto, em que possamos dizer que antes não éramos e depois passámos a ser. Escreve Mattoso: «não é possível isolar um momento em que se possa surpreender a passagem do não ser para o ser: a nação não tem certidão de nascimento.» E mais adiante, acrescenta: «A nacionalidade nasce de uma cadeia de factos históricos (no mais amplo sentido do termo, incluindo, portanto, factos coletivos, movimentos sociais e culturais, decisões políticas e conjunturas económicas, etc.) cuja conjugação pode finalmente levar à maturidade do fenómeno nacional.»
É isto que nós consideramos ser merecedor de celebração. Não um dia, mas um tempo. Não um ano, mas um processo. Não um gesto, uma escritura, um momento, mas o desfiar daquele acaso criador de, como Mattoso chama a atenção, vários “factos”, “movimentos”, “decisões” e “conjunturas”, que de um condado fizeram um reino e, por este reino, um país, uma língua, um povo, uma nação e um Estado, isto é, que de um condado fizeram uma das mais antigas nações do mundo. Maravilha!
Minhas Senhoras,
Meus Senhores,
Vivemos num tempo da vida nacional em que, ao que consta, há incerteza e inquietação com o que se passará nos próximos meses e logo a seguir. Não é problema. Em ocasiões destas, não há como espraiar o nosso olhar pelos 900 anos atrás – e escolher onde pôr a virtude e buscar a inspiração – e, ao mesmo tempo, alargar a nossa visão pelos 50 anos à frente, aí projectando os nossos sonhos e ambições, os nossos desígnios e propósitos. O que são uns meses na grande perspectiva do tempo e da História?
Quando foi da transição em Macau e sua Lei Básica, uma vez mais admirei a capacidade chinesa de regular a 50 anos de vista, como se um século fosse um ponto e vírgula e meio século apenas uma vírgula, Essa capacidade oriental de enquadrar o tempo histórico e de colocar em andamento lento o que não pode, nem deve ser feito de imediato. No ocidente, ganhamos se entendermos e assimilarmos esta sabedoria chinesa. Na estratégia dos povos e dos países, temos de nos situar, para reger o tempo como deve ser, como pode ser. A história mostra e ensina. A visão larga aponta e marca o rumo para lá das curvas e contracurvas do percurso, dos obstáculos e acelerações.
Apresentámos, há umas semanas, formalmente, ao Senhor Presidente da República a nossa ideia quanto a assinalar os 900 anos de Portugal ao longo dos próximos 50 anos. E, a seguir, inauguramos no Palácio da Independência uma exposição que apresenta e esquematiza a nossa ideia.
Não é obviamente estarmos 50 anos sempre em festa: não seria bom, nem possível. É ter e comunicar o entendimento de a nossa fundação foi um percurso de cerca de 50 anos, que podemos situar de 1128 (a batalha de São Mamede) até 1179 (a bula Manifestis probatum), passando por outros dois picos, em 1139 (Ourique) e 1143 (a conferência de Zamora). Essa janela temporal começa mais cedo, já em 2025, quando passam 900 anos sobre o gesto de Afonso Henriques, muito jovem, de se armar cavaleiro, assim dando o primeiro sinal público do seu propósito de realeza. E a mesma janela temporal marca o espaço em que, de forma escolhida, sempre sob o selo dos 900 anos, podemos assinalar outros factos salientes daquele mesmo período medieval, assim como e outros acontecimentos marcantes noutras épocas ligados à definição do nosso território, à nossa independência e liberdade colectiva, à nossa língua, à nossa identidade e marca. O que procuramos encontrar aí é saber e conhecimento – que nunca ocupam lugar. O que somos? Como nos fizemos? Como aconteceu? Por que aconteceu? E o que queremos buscar aí é inspiração e destino. Para onde vamos? Para onde queremos ir? Que dificuldades queremos vencer? Que metas queremos atingir?
A história contém êxitos e fracassos, E, na tal sabedoria larga de maestria no comando do tempo, devemos inspirar-nos nos êxitos para ir mais longe do que alguma vez fomos e conhecer e reconhecer os fracassos para não recair.
Temos inúmeros problemas para resolver: pobreza que continua a níveis assustadores, crescimento económico insuficiente para servir os nossos filhos e os nossos velhos, coesão territorial a afundar, derrapagem persistente para a cauda da Europa, sistema de justiça com áreas crónicas em crise. Perguntarão: que tem isso a ver com Afonso Henriques? Talvez tudo: ele fez um país e nós não conseguimos governá-lo? Nós estivemos na linha da frente da Europa, somos a frente atlântica do continente, e aceitamos afundar-nos na rectaguarda?
O olhar da História é também a oportunidade de uma chicotada psicológica de brio, de exigência sobre nós mesmos, de amor-próprio, de vontade de realizar. É o que, na Sociedade Histórica, acreditamos poder tirar deste nosso plano e desta ideia: sonho, razão e propósito.
Queremos fazê-lo de forma descentralizada, como somos, como o nosso país se fez e realmente é. Por isso, concebemos e construímos outro subprojecto cuja função é levar esta notícia dos 900 anos à base popular e municipal do país. Chamamo-lo “Forais da Fundação, Municípios de Portugal” e já tem o Alto Patrocínio de Sua Excelência o Presidente da República, que aqui agradeço. Viseu fez já, neste ano, um trabalho magnífico. Trata-se de celebrar os 900 anos dos forais concedidos pelo nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, incluindo no período condal, assim como por seus pais, o Conde Henrique e D. Teresa, ou seja, num período que vai de 1095 a 1185. Esta proximidade e aliança entre o rei e os povos, nas suas terras, foi muito importante na construção da nacionalidade e da coesão nacional, que seria fortemente posta à prova no século XIV. E o lema é muito motivador: “As terras que fizeram Portugal já estão a comemorar 900 anos.” Essas terras foram à nossa frente. Sinalizaram o caminho.
No outro projecto maior, já articulámos a coordenação institucional com instituições homólogas com que habitualmente cooperamos, com destaque para as grandes Academias; e também já implantámos a Comissão Executiva em todas as Universidades portuguesas, através de um respectivo professor universitário, sob a presidência do historiador e professor João Paulo Oliveira e Costa. Concebemos uma estrutura orgânica cientificamente consistente, credível e respeitável, solidamente implantada, operacional, com uma matriz de atribuição rotativa de responsabilidades na direcção de eventos específicos. Pensámo-lo à medida do que, no nosso entender, Portugal merece para respirar intensamente o oxigénio dos nossos 900 anos.
Estamos prontos a avançar: 2025 é já ao virar da esquina. Gostaríamos também de vir a merecer o Alto Patrocínio de Sua Excelência o Presidente da República para este projecto maior; e pedimos o apoio e o envolvimento governamental como é indispensável a um plano desta dimensão e significado. Aqui, a crise política alterou o calendário previsto. Mas continuamos a adiantar trabalho para, a seu tempo, podermos avaliar rapidamente estas ideias com o próximo governo e, então, tomar as decisões necessárias e adequadas.
Senhor Presidente da República,
Senhor Presidente da Assembleia da República,
Senhora Ministra,
Excelências,
As últimas palavras dedico-as à senhora que desceu comigo a avenida. Chama-se Luísa. Perguntei-lhe se também é Luísa de Gusmão, a grande Luísa do dia nacional de hoje. Riu-se.
Gostava que esta inspiração que buscamos nos grandes momentos e fortes referências da nossa História ainda fosse a tempo de nos fazer tão melhores tão depressa que os seus netos já não tivessem aquele impulso de ir para fora. E que ficassem cá com a avó e com os pais, felizes na sua terra e a construir Portugal, com ânimo e confiança, optimismo e ambição de vencer.
Não que eu ache necessariamente mal que as pessoas vão para fora, porque têm hipóteses melhores. Também tenho filhos e netos, e sobrinhos, que foram para fora – e não sei quando virão, nem se alguma vez virão. Não sei. Partir está-nos um pouco no ADN nacional, já não é tão difícil e doloroso quanto era nos anos 50 ou 60, do ponto vista pessoal é sempre melhor ter alternativa do que não ter e, do ponto de vista nacional, pode ser favorável à construção de redes que fortalecem a nossa internacionalização e prosperidade. A liberdade de circulação é um bem, não é um mal.
O que está errado é senti-lo como uma condenação e não como uma escolha: quando os jovens têm de sair não porque realmente queiram, mas porque não encontram vida no seu país. Cada um deve poder seguir o seu próprio sonho, seja cá ou seja lá. E o país deve proporcionar a todos orgulho na terra onde nascem, confiança na terra onde crescem, oportunidades para se realizarem e nos fazerem crescer a todos.
Oxalá ainda estejamos a tempo de alargar os horizontes em Portugal aos jovens que vão tomar decisões estruturais durante esta década, até 2030. Para mudar, basta começar. Depois, é seguir. Porque é que não pomos como objectivo nacional que, em 2036, Portugal atinja, finalmente, a paridade com a média europeia? Depois de anos a fio a receber largas dezenas de milhares de milhões de euros, não é demais atingirmos essa meta básica meio século depois de entrar nas Comunidades Europeias. Por que não vamos por aí? Por que não identificamos marcadores que nos puxem para diante e teimamos em patinar na mediocridade dos últimos lugares?
O 1.º de Dezembro serve para isso. Para alimentar a nossa liberdade e independência. Que país é independente sempre de mão estendida? Sempre dependente dos fundos, que olha com gula, em vez de se focar na construção da própria riqueza? E que liberdade existe, se não for para servir prioridades nacionais?
Vamos lá!
Viva Portugal! Viva os 900 anos de Portugal!