As Forças Armadas num Mundo em Situação de Anarquia

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Adriano Moreira

Conferência realizada no dia 15 de Fevereiro de 2012 na Sociedade Histórica da Independência de Portugal no âmbito do Conselho Supremo

Portugal viveu séculos em regime de cadeia de comando, antes e depois de a população assumir a natureza de Nação, o que se verificou no fim da Primeira Dinastia, com uma verdadeira refundação do Estado.

A Dinastia de Avis, que iniciou a expansão marítima e construiu o I Império que acabou, falido, em Alcácer Quibir, também foi gestora de uma Nação em cadeia de comando, com a vontade de EI Rei D. João II a amarrar ao leme a mão do marinheiro. A III Dinastia foi de submissão a uma cadeia de comando invasor, mas a longa batalha da Restauração, as lutas liberais que levaram à vitória que parecia impossível do Duque de Bragança D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal, que terminou com o II Império, multiplicou e dividiu as cadeias de comando, mas o regime liberal voltaria à cadeia de comando para a construção do III Império depois da Conferência de Berlim.

Também são facilmente enumeráveis as ocasiões em que a Cadeia de Comando se independentizou do Poder Político para instaurar uma Nova Ordem, como aconteceu com Sidónio, o chamado Presidente Rei, com o Marechal Gomes da Costa em 1926, e com os Capitães na Revolução de Abril de 1974.

Independentemente de nos parecer que a longa submissão à cadeia de comando teve influência no facto de ser constante a atitude de distância entre a sociedade civil e o poder político tratado na terceira pessoa (eles), a relação entre a obediência das forças militares e revolta, precisa de animar alguma meditação sobre se existe um paradigma comum dos comportamentos. Ocorre-me sugerir que esse paradigma, permanente mas de conteúdo variável, está na concepção da maneira portuguesa de estar no mundo, que antecede a definição de qualquer regime, mesmo constitucional e democrático.

A questão é a de um paradigma institucional, que teve na identificação da Nação, um facto reconhecido e anotado por Goethe, na Batalha de Valmy, a expressão mais significativa do património imaterial dos ocidentais. Entre nós, tem-me parecido que os Lusíadas, cujas edições foram múltiplas durante o regime filipino, como padrão de resistência, definiu o conceito estratégico nacional naquilo que tanto o conservadorismo de Burke (1729-1797), como os defensores da chamada “constituição da liberdade” dos liberais, consideram o “eixo da continuidade” das instituições, sem impedir que o tempo imponha alterações políticas, económicas, culturais, que implicam reformulações sociais, preservando o embora frágil eixo da roda.

É justamente destas modificações que hoje se ocupam pensadores, analistas, governantes, todos enfrentando uma complexidade do mundo que escapa aos modelos da racionalidade herdada, e que também partilha o conceito e função das Forças Armadas, como de todas as outras instituições com que se articulam, começando pela instituição integradora, que é o Estado.

Em primeiro lugar o fenómeno do globalismo, do qual se disse que, invocando Pascal, “é uma esfera cujo centro está em toda a parte e a circunferência em nenhum lugar”.

Até então, e pelo que toca ao dever militar, tomando como referência aquilo que se chamou a primavera dos povos em que a Nação era o valor cimeiro de referência, podemos citar o discurso de Adeus aos Veteranos, que Napoleão proferiu no Palácio de Fontainebleau em Abril de 1814: “Soldados da minha Velha Guarda: despeço-me de vós, Durante vinte anos, acompanhei-vos sem cessar no caminho da honra e da glória. Nos últimos tempos, tal como nos dias de prosperidade, haveis sido modelo de coragem e fidelidade. Com homens assim, a nossa causa não pode estar perdida; mas a guerra seria interminável; seria uma guerra civil e acarretaria desgraças ainda maiores para a França. Sacrifiquei todos os meus interesses pessoais pelos gerais. Vou partir, mas vós, meus amigos, continuareis a servir a França”.

Entretanto, a Europa que viveu num sistema que foi simultaneamente de governo do mundo (império euromundista, e ocidental) e de guerra civil das soberanias, perdeu com o império, de que Portugal tinha parte, o domínio das fontes de matérias primas, de energias renováveis, e do mercado dos produtos acabados, que foi a dinâmica do novo III Império Africano; evolucionou no sentido de reconhecer que, rodeada de “perigos mais do que de ameaças” (Hassner), devia procurar numa unidade política, apoiada pelos EUA, essa criação de europeus emigrados, a paz para o futuro, e a recuperação do desenvolvimento sustentado da reorganizada vida interna das sociedades civis. Infelizmente, meio século de guerra fria, que manteve as Forças Armadas de prontidão, fizeram da ameaça soviética a inquietação dominante até à queda do Muro de Berlim em 1989, e depois, até à queda das Twin Towers em 2001, descurando as ameaças inerentes de um globalismo em crescimento, que acompanhou o declínio da Ordem Mundial oferecida com a Carta da ONU no fim da guerra de 1939-1945.

Os riscos nucleares, climáticos, as catástrofes naturais, vieram acrescentar as inquietações de uma polemologia em movimento, de algum modo imprevisível, porque as ameaças são novas e dificílimas de graduar. A proliferação nuclear e a proliferação balística, a cibernética apresentada como ameaça ou militar ou civil, de novo os mares infestados pela pirataria, e, subitamente, a União Europeia, o sonho de tantos visionários da paz, desde o filósofo Kant (1724-1804) ao gestor admirável que foi Jean Monnet (1888-1979), envolvida no desastre mundial da economia e das finanças em que estamos mergulhados. A crise é de tal modo grave, que o colóquio organizado em Paris, em Junho de 2011, teve como base um trabalho colectivo intitulado Un Monde sans Europe? (Fayard, Paris, 2011), e tendo como inspiração os trabalhos do Conseil Economique de Defense presidido por Philipe Esper.

Esta rapidíssima alteração da circunstância mundial e do declínio da Europa, verificou-se num período em que a rápida mudança de trajecto imprevisível da polemologia, cerca a crise financeira e económica da Europa de vários desafios que inevitavelmente se reflectem no repensar e, portanto, na redefinição do papel das Forças Armadas.

Alguns erros de perspectiva são já suficientemente visíveis, designadamente o facto de a NATO, que manteve uma unidade dos ocidentais do Norte do mundo enquanto existiu a ameaça soviética, ter sido objecto de uma cisão interna causada pelo unilateralismo republicano dos EUA, com visível fractura no caso do Iraque. O antigo vício europeu de não ter Estados vizinhos, mas apenas inimigos íntimos, como aconteceu entre a França e a Alemanha, ou entre Portugal e Espanha, tendeu para ser ressuscitado pelo confronto entre americanismo e europeísmo, que o neoconservadorismo americano alimentou.

Por outro lado, quando o conflito das civilizações era anunciado por Huntington, contrariando o fim da História em que acreditou Fukuyama, desencadeou-se um turbilhão no Mediterrâneo que soma o perigo das violências religiosas à imprevisibilidade das revoluções árabes, advertindo os povos europeus, em crise financeira grave, e com os seus países mediterrânicos abrangidos pela fronteira da pobreza que subiu do Sul para o Norte do Globo, de que são responsáveis pelos programas de recuperação que anunciaram, mas também são responsáveis pelos imprevistos que podem decorrer dessa situação. E nenhuma perspectiva pode assegurar que os ideais democráticos ocidentais se vão conciliar harmoniosamente com os imperativos do Corão, podendo acontecer que a situação no Yémen, na Líbia, e na Somália, favoreçam a AI-Qaida, e que na Tunísia e no Egipto os partidos islâmicos, designadamente os já visíveis Fréres Musulmans, assumam um papel político inquietante. Nesta data, o crescimento da violência contra os cristãos no Médio Oriente ou contra os coptas no Egipto, já obrigam a prestar atenção.

Enquanto isto se passa na Europa, os EUA, para além do unilateralismo e do conflito doutrinado entre o europeísmo e o americanismo, dá mostras de uma evidente debilitação perante os poderes emergentes, como destacadamente, a China e a União Indiana. O discurso do Yes, we can de Obama, que entusiasmou pelo menos todo o mundo ocidental, e deu esperança de mudança ao resto do mundo, não apenas não conseguiu alterar visivelmente a estrutura de comprometimentos e responsabilidades assumidas pela administração republicana, como também os próprios EUA estão envolvidos pela crise financeira de que são responsáveis nas causas, e vitimas dos efeitos.

E aqui chegamos, sem necessidade de maiores reflexões sobre a conjuntura em mudança, pelo menos a estas conclusões: a) não é apenas a Europa que sofre de decadência e vê a fronteira da pobreza avançar para o Norte do Mediterrâneo, é o Ocidente que está em visível decadência que exige uma profunda meditação conjunta da polemologia em mudança; por isso, é um erro que as forças e dirigentes europeus coloquem em risco a própria União, com a tendência para o Directório já revelada pela Alemanha e pela França, quando é evidente que nenhum desses países tem capacidade global, que a França não tem dimensão para ser membro com direito de veto no Conselho de Segurança, tudo quando os recursos orçamentais provocam duvidas sobre a sabedoria de insistir, quer na Europa, quer nos EUA, em defesas independentes. Pode o incómodo Henry Kissinger (1973) sustentar que a Europa é uma potência regional e os EUA uma potência global, mas a dependência dos EUA da China não consente dar-lhe indiscutível credibilidade. O certo é que “os orçamentos militares emagrecem no Ocidente, e os países emergentes, a começar pela China, aumentam de maneira espectacular os esforços e as ambições” (Hassner, 2011). Não evito destacar o esforço marítimo do Império do Meio.

Por muito que o globalismo esteja presente em todas as avaliações da conjuntura internacional, o facto é que parece existir um pano de fundo sobre o qual as atenções se fixam sucessiva e alternadamente em pontos concretos, em geral anunciados de perigo agudo, e que a semântica da comunicação leva a desviar as atenções do globalismo que se consolida sem projecto. Assim acontece com um facto importantíssimo da evolução estratégica mundial, e que é o de a China ter mostrado a bandeira, segundo uma linguagem que parece ter caído em desuso, ao inaugurar a presença do seu primeiro porta-aviões, chamado Varyag, objecto final dos vagares inerentes à maneira chinesa de olhar para o tempo, e neste caso desde 1990. Por esse tempo ainda a crise financeira e económica mundial não preenchia os ocupados dias dos observatórios mundiais, e o velho porta-aviões que a China adquirira à Ucrânia pode, sem segredo, que resultou ser a melhor maneira de agir sem despertar a vigilância das altas potências, produzir o agora crismado Shi Long, inteiramente reformulado em termos de poder iniciar a sua primeira e tranquila viagem experimental no mar chinês. É necessário lembrar que um porta-aviões exige alguma coisa mais em termos de protecção própria, quer marítima, quer aérea, e, para resumir o ponto que parece tomar-se claro, a partir deste mostrar da bandeira, vai decisivamente ganhar relevo a questão dos vários Pacíficos, um tema muito especificamente do interesse permanente americano, que tem ali uma das referências históricas do seu conceito estratégico militar, e da sua histórica e fundacional marcha para o Oeste. A agenda das visitas diplomáticas do actual Presidente dos EUA já tinha mostrado que esta referência do Oeste voltava a impor a sua validade, mas um porta-¬aviões com bandeira chinesa tem o efeito imediato de tornar mais evidente e presente o interesse histórico nacional, acrescido agora de admissível inquietação dos EUA. É natural que o saber americano, comprovado em todas as suas intervenções marítimas, possa, com fundamento, adiantar a segurança em que poderá repensar que o tempo ainda será uma barreira defensiva da sua superioridade, porque será longo, do ponto de vista ocidental do tempo, o tempo que à China será necessário para constituir um grupo aero-naval a considerar. Mas a perspectiva política é necessariamente mais antecipatória nas meditações, e não parece mostrar a maior das tranquilidades o facto de o Departamento de Estado ter considerado que a conduta chinesa tem “falta de transparência”, premissa eventual dos corolários inquietantes sobre a questão de saber qual será o interesse vital que a China procurará proteger com a esquadra que deixa perceber que pretende possuir, designadamente incluindo a definição do Pacífico chinês que terá em vista. É difícil fundamentar a esperança de uma resposta, se possível ao mesmo tempo esclarecedora e tranquilizante, na história passada do crescimento dos poderes marítimos que sucessivamente foram alcançando e perdendo, as outrora grandes potências marítimas. Parece difícil ignorar que, como anos já passados foi de quando em vez sublinhado, designadamente tendo em conta a situação de Taiwan, que o Pacífico será múltiplo nas áreas de influência, e que não é apenas no domínio da dívida soberana que os analistas americanos deverão pensar na China sobre o futuro incerto que se avizinha.

Incerto, mas trazendo o que parece ser já uma certeza, a de que a balança de poderes será outra, e que a China pesará no desejável equilíbrio. Muita da contenção verificável nas relações dos EUA com a China, no período Obama em curso, passando discretamente sobre o tema dos direitos humanos, tem relação clara com a percepção do enorme poder que começou a demonstrar o crescimento na relação financeira. Mas o poder marítimo que desponta obrigará a repensar a relação entre a fronteira geográfica e a fronteira dos interesses.

Neste panorama, o debilitado Portugal, com o Estado a evoluir para Estado exíguo, e o território a ser abrangido pela fronteira da pobreza, tem de meditar na sua viabilidade perante o mundo e na sua confiabilidade para reconstruir o futuro, o que o obriga a pensar nas suas Forças Armadas e nas janelas de liberdade que possui. Em primeiro lugar aparece uma evidência, sem contestação possível, que toda a envolvente da complexidade de ameaças lhe respeita, e que não participar nas respostas possíveis agravaria o inevitável agravamento de ser atingido pelas agressões, depois de atingido previamente pelas decisões em que não participara. Designadamente, no que toca ao turbilhão do Mediterrâneo, Portugal está abrangido pelo desafio, como está abrangido pelo desafio do Atlântico Norte, como está abrangido pelo desafio do Atlântico Sul, seja qual for o Orçamento, e estando sempre em causa a viabilidade do país. Durante meio século da NATO nunca foi posta em causa a idoneidade e capacidade dos seus militares: essa capacidade mantem-se, a vontade política é que tem de meditar-se a si própria, na sua capacidade e determinação.

Por outro lado, a identidade nacional não está em perigo, porque a crise o que atinge é o Estado, não é a Nação. Na confusão habitual entre globalismo – conjunto de interdependências geralmente colaterais -, mundialismo que diz mais respeito ao consumismo, – e identidade que diz respeito à sociedade, neste caso a Nação, as Forças Armadas tiveram sempre um papel inapagável, mas quero destacar a época do serviço militar obrigatório: na alfabetização das populações, na profissionalização dos recrutas, na doutrinação do civismo e do patriotismo a sua intervenção é historicamente inegável.

No multiculturalismo desordenado das sociedades europeias e ocidentais, agora sublinhado pela espécie de cemitério em que está a transformar-se o Mediterrâneo, esse papel é impossível de ser retomado face às novas convicções políticas, agravadas pelo economicismo da crise, sobre o serviço militar obrigatório. Mas a divisão que o multiculturalismo está a criar entre sociedade civil e multidão, está provocando a anarquia que se manifestou em Paris, em Atenas, em Setúbal, mostra que não se encontrou substituto para essa extinta função, e que o risco é evidente. Acontece ainda que, em parte pela evolução da técnica aliada às atitudes mais ideológicas, e substituição do dever cívico da incorporação pelo contrato do contingente, contribuiu para cortar a ligação da sociedade civil com a ética, a função, e a capacidade dos quadros permanentes.

É necessário remédio. Porque a capacidade dos quadros permanentes, atestada pela qualidade do ensino dos seus estabelecimentos, faz designadamente desses quadros elementos insubstituíveis na consolidação das relações com os países da CPLP, toda constituída por países marítimos, onde a sua intervenção é de um relevo comprovado e excepcional, e essa excelente qualidade profissional tem de ser usada e aproveitada nas redes das instituições de segurança e defesa que o Ocidente tem de revigorar e consolidar: o saber e a inteligência são contribuições que não dependem da dimensão e qualidade da gestão dos Orçamentos. Por isso uma articulação entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Defesa parece uma tarefa inadiável, assim como, finalmente, o completo reconhecimento do nível universitário do seu ensino. Temos crise financeira grave, economia débil, um Estado a caminhar para exíguo, um povo a enfrentar exigências de pobreza. Mas temos um capital de civismo que as Forças Armadas acumulam, uma capacidade científica e técnica que não teme confrontos, uma inteligência disponível cujo maior indesculpável risco é que não seja usada. Aquilo que nos desafia é que esta realidade secular portuguesa não sofra diminuição nem afrontas. As Forças Armadas são indispensáveis, com qualidade científica, técnica, e sobretudo como baluarte da ética cívica, para que, seja qual for a crise do Estado, se mantenha integra a identidade da Nação.

O Professor Doutor Adriano Moreira na conferência que realizou no Salão Nobre em 2012.
A assistência na sala.

* Adriano Moreira – Antigo Presidente do Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa, do Conselho Geral da Universidade Técnica de Lisboa e do Conselho Supremo da Sociedade Histórica da Independência de Portugal.