Desafios para os Cristãos na Europa de Hoje

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Pe. Duarte da Cunha


I – O QUE É O CONTINENTE EUROPEU
A Europa é um continente. Esta afirmação tem várias implicações. Antes de mais, isso tem um significado geográfico: apesar de nem sempre ser claro onde a Europa começa e termina, há uma geografia que une as várias partes desta zona do globo, e que as distingue das demais. Mais importante é, no entanto, o facto de nesta região do mundo existirem diversos povos que, apesar das suas muitas diferenças, partilham uma cultura e um lastro histórico que os relaciona desde há séculos. Podemos mesmo falar de uma alma da Europa que, no fundo, é aquilo que dá forma ao modo como se vive aqui. Só depois disto – e idealmente como suporte desta alma – é que a Europa pode ser entendida como um projeto económico ou político.

O nome da Europa tem na sua etimologia – apesar de esta poder ser objeto de alguma discussão – algo que explica, de certa maneira, a identidade deste continente. Uma das hipóteses da sua etimologia diz que Europa provém da junção de duas palavras gregas: ευρύς, que quer dizer “com largueza”, e όψη que quer dizer “olhar” ou “visão”. Europa seria então sinónimo de “visão de longo alcance”. De facto, a história da Europa mostra como esta foi sempre capaz de acolher pessoas e culturas diferentes e de olhar para o resto do mundo com desejo de o conhecer. Além disso, a história dos povos europeus é marcada pelo desejo de ver mais longe, de ir para lá do imediato e do que está à vista, desenvolvendo a ciência, explorando terras e mares nunca dantes navegados, e sempre abrindo-se ao Transcendente e à eternidade. Podemos mesmo dizer que esta é a vocação da Europa, a de ir para lá de si mesma.
Três fatores históricos fundamentais contribuíram para a identidade da Europa: a reflexão filosófica dos gregos, a organização social que se consegue com o Direito dos romanos e o encontro com a religião judaico-cristã.
Estes três elementos – que, ao longo de séculos, não só não se opuseram como se completaram e se foram misturando numa síntese até se tornarem uma base cultural comum a todos os povos europeus – podem ser considerados providenciais e, sem eles, a realidade europeia e a sua profunda influência sobre o resto do mundo não existiriam como as conhecemos. Certamente muitos outros dados entram na síntese que é a Europa hoje, que vêm de povos tão diferentes como os eslavos, os magiares, os nórdicos, os germânicos, para citar apenas alguns, e que se cruzam com a síntese de Atenas, Roma e Jerusalém, levando esta a ser mais do que seria sem esses contributos.
A Filosofia permitiu ver o ser de tudo e orientou a busca do sentido da vida nos homens e mulheres destes povos que aqui vivem, num esforço de ir para lá das aparências. O Direito tornou possível a organização estável das relações sociais dentro de uma sociedade e a convivência pacífica e ordenada de povos diferentes. O Cristianismo, por seu turno, permitiu alicerçar toda a vida numa relação real com o Deus verdadeiro, que Se deu a conhecer pessoalmente como uma comunhão de pessoas – a Santíssima Trindade –, que Se fez homem em Jesus Cristo para redimir a humanidade e assim a libertar do pecado e da morte, que instituiu uma comunidade humana onde permanece presente e que antecipa, de algum modo, o Reino de Deus cuja plenitude se terá no Céu, mostrando que a vida não termina neste mundo e que o amor é a Lei fundamental para se viver em conjunto com os outros.
Hoje, o grande desafio europeu é precisamente manter bem viva a memória destas suas raízes. Não apenas uma recordação distante, mas uma memória viva, ou seja, um modo de viver onde, a partir destas raízes, possam nascer frutos que marquem já o presente e que tenham repercussões no futuro. Esquecer um destes aspetos da identidade europeia, ou tentar inventar projetos que fazem tábua rasa das suas raízes seria, não apenas uma destruição do passado, mas também uma obstrução do futuro. Negar a tradição cultural e as suas raízes leva a uma desintegração do terreno comum em que assentam as relações pessoais e comunitárias.
Infelizmente, este desmantelar da Europa parece hoje ir-se sentido em diversas áreas. Por exemplo, no campo da filosofia, desde há décadas que se está a tentar substituir a metafísica que dava segurança ao conhecimento da realidade por uma pós-modernidade niilista que torna tudo irrelevante e que extirpa da concretude da existência a indagação pelo seu sentido mais profundo.
Também no campo do Direito, é cada vez mais comum a tentativa de pensar o fundamento das leis a partir do positivismo jurídico, segundo o qual a lei é justificação de si própria, ao invés de se alicerçar em princípios anteriores e mais profundos. As regras do convívio social vêem-se assim afastadas das bases firmes da Verdade e da natureza e, portanto, unicamente baseadas no pensar de quem detém o poder – seja ele um ditador, uma oligarquia financeira ou uma ideologia dominante que mobiliza uma maioria através da propaganda.
Por sua vez, a religião em geral tende a ver-se reduzida ao estatuto de uma opinião privada. A mentalidade dominante, considerando que a ideia de que Deus é uma abstração, esforça-se hoje por impor uma religião agnóstica como fundamento de uma espiritualidade – que se continua a considerar importante –, mas em que a Revelação divina deixa de ser considerada como fonte certa de conhecimento e como fundamento de uma vida. Não se trata de anular a religião, mas de lhe tirar o seu centro, isto é a relação com Deus, para procurar uma espiritualidade que não precise de se relacionar com as Pessoas divinas. Continua a haver ritos, datas para celebrar, pessoas para venerar ou memórias para recordar, exatamente como no Cristianismo. E é de tal maneira semelhante a uma religião que é mesmo possível fazer um paralelismo entre o sentido religioso que, no coração do homem, grita por um encontro com o Deus verdadeiro, e o desejo de consumo e de bem-estar de onde se espera a felicidade e a plena realização de si.
Em parte, estas mudanças culturais assumem, face às raízes da tradição cultural europeia, uma posição de confronto ou, pelo menos, de desafio. São modos de pensar a vida de tal modo diferentes – e, ao mesmo tempo, capazes de afetar todo o existir humano – que implicam a escolha entre uma ou outra visão, sem que seja possível uma solução de compromisso ou de síntese.
A Igreja, ao insistir no apelo às raízes cristãs da Europa, procura salvar a realidade mais profunda da Europa e proteger esse substrato cultural que une os povos e as culturas europeias, sem a pretensão de destruir neles a pluralidade de características vernaculares que lhes é própria. Afinal, como dizia Hilaire Belloc, só a Igreja Católica – cuja natureza é precisamente a de ser uma comunhão com horizontes universais, que integra inúmeras pessoas e modos de ser, valorizando o que de verdadeiro existe em cada cultura, e nela corrigindo o que for preciso – consegue ver a Europa a partir de dentro. Dizia ainda Belloc que “a civilização europeia, que a Igreja Católica fez e faz, é por sua influência ainda uma. A sua unidade sofre, mas apesar de tudo, a unidade, ferida ou não, é sempre a marca da cristandade” (H. Belloc, Europe and the faith, Introduction).


II- UNIDADE E DIVERSIDADE
Já dissemos que o nosso continente é um conjunto de povos. Somos um continente e, por isso, há algo que une todos os que vivem nesta geografia. Mas também somos de origens diversas, com culturas e línguas diferentes. Temos raízes comuns, somos uma família de povos, com proveniências muito distintas, mas todos acolhidos aqui e que, ao longo da história, se foram relacionando de tal forma que hoje, para lá das muitas divisões, somos um todo. Ao longo dos séculos, eclodiu muitas vezes a tentação de se criar à força uma unidade uniforme em que todas as diferenças fossem abolidas. Houve impérios – políticos, económicos ou militares – que souberam conviver com a diversidade, mas houve e há projetos ideológicos e bélicos cujo objetivo era e é a uniformização.
Se, como por vezes se pretende nos ambientes anticlericais, se tentasse construir a unidade europeia longe do esteio das raízes cristãs, ficaria de lado aquele elemento fundamental que acomuna organicamente todos os povos, ao mesmo tempo que preserva as especificidades de cada povo. A unidade tornar-se-ia um sonho utópico e, cedo ao tarde, assomados ao de cima os egoísmos do coração ferido do homem, seria inevitável, ou a tentação da desintegração, ou a insistência em forjar uma unificação artificial, assente na força do poder ou da economia. Pelo contrário, quando assumimos a herança cristã que forjou realmente a cultura europeia, então são recordados os grandes princípios na base dos quais se pode construir uma sociedade estável: a importância da religião e da liberdade na relação com Deus, a fundamental dignidade da pessoa humana, a centralidade da família como célula da sociedade, a subsidiariedade nas relações sociais, a solidariedade para com os mais pobres, e o cuidado de um bem comum, “ou seja, o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição” (Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes 26).
Da parte da Igreja Católica, tem havido sempre um olhar favorável ao esforço de promoção da unidade, sem deixar de alertar para possíveis desvios ideológicos que forçam uma dissolução das tradições culturais. As tensões que atualmente existem dentro da Europa mostram bem como a tentativa de pensar o homem fora da relação com Deus e com os outros, sem reconhecer que cada pessoa é intrinsecamente um ser social e um ser religioso, é um erro epistemológico gravíssimo, cujo resultado será, como estamos a ver atualmente, muito mais próximo do caos do que da Paz.

III – O PROTAGONISMO DOS SANTOS E A DOR DA DIVISÃO
Ao longo de dois milénios de história da Igreja na Europa, muito bem foi feito por tantas pessoas grandes, mulheres e homens, quer agindo de um modo visível a todos, quer atuando na discrição dos seus ambientes familiares e comunitários. Muito desse bem na história da Europa foi protagonizado pelos santos, que encarnaram de um modo exemplar a vida nova recebida de Jesus Cristo e, por isso, tornaram-se fermento dentro de uma sociedade e imprimiram nela a marca da Verdade que a sua fé revela.
Os santos foram – são – pessoas extraordinárias, mas a sua identidade pessoal não se entende sem a dimensão social e comunitária. Como todas as pessoas, eles nasceram num contexto, numa sociedade. Foram, por um lado, gerados pelas comunidades cristãs e, por outro, foram peças determinantes para a vida dessas comunidades e para a forma cristã que elas foram assumindo.
Os santos determinaram o modo como pensamos a nossa vida à luz da fé. Basta pensarmos nos grandes Padres e Doutores da Igreja, como Santo Ambrósio de Milão, Santo Agostinho, São Leão Magno e São Gregório Magno, Santo Isidoro de Sevilha, Santo Hilário, São Pedro Damião, São Tomás de Aquino, São Boaventura, e, mais recentemente, São João Bosco, São João Maria Vianney (Cura d’Ars), Santa Teresinha do Menino Jesus, São Pio X, São João Paulo II; nos reis santos, como Santo Estêvão da Hungria (de cuja família também nasceram Santa Margarida da Escócia, e as Santas Isabel da Hungria e Isabel de Portugal), Santo Eduardo, o Confessor, rei de Inglaterra, São Luís de França, São Casimiro da Polónia; nos santos que fortaleceram a Igreja e a comunhão entre os cristãos, como São Martinho de Tours, São Columbano ou São Galo, São Bonifácio, São Patrício, São Josafat e tantos que, pela Europa, foram fundando dioceses; nos santos que promoveram a fé em tempos de confusão, como São Luís Maria Grignion Monfort, São Tomás Moro, São Vicente de Paula. Lembremos ainda os grandes santos reformadores, que, inspirados, anteciparam e prepararam a Igrejas para as mudanças sociais que estavam a acontecer, fazendo nascer novos carismas na Igreja – os santos Francisco de Assis e Domingos de Gusmão, Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz, Santo Inácio de Loyola, São Filipe de Néri, Santo Afonso Maria de Ligório, Santa Margarida Maria – e, naturalmente, os grandes santos portugueses, como Santo António de Lisboa e São João de Deus que deu origem ao conceito moderno de hospital, ou Santa Beatriz da Silva que, depois de ter servido a imperatriz, funda uma ordem de clausura. Sobretudo, porém, recordemos os padroeiros da Europa: São Bento, os irmãos santos Cirilo e Metódio, Santa Catarina de Sena, Santa Brígida da Suécia e Santa Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein).
A lista seria interminável e muitos outros nomes nem sequer são conhecidos pela história dos homens, apesar de serem bem conhecidos por Deus e de terem deixado marcas no mundo. O protagonismo dos santos é bem visível no facto de que à volta deles sempre nasceram comunidades e obras que tornaram a fé cristã uma proposta concreta. Foram de ajuda a tantas pessoas que, através do seu testemunho, muitos descobriram Deus e acolheram a vida que Ele oferece. Os santos são, de facto, os grandes fazedores da Europa cristã. Como recordou o Papa Bento XVI na sua vinda a Lisboa: “Sabemos que à Igreja não faltam filhos insubmissos e até rebeldes, mas é nos Santos que a Igreja reconhece os seus traços característicos e, precisamente neles, saboreia a sua alegria mais profunda. Irmana-os, a todos, a vontade de encarnar na sua existência o Evangelho, sob o impulso do eterno animador do Povo de Deus que é o Espírito Santo” (Bento XVI, Lisboa 12 de Maio 2010).
Apesar de todo o bem feito por tantos santos conhecidos ou desconhecidos, houve e há, também, como recordou Bento XVI, alguns cristãos que se tornaram protagonistas de conflitos e de divisões e que deram origem a escândalos. Não foi, contudo, convêm que fique claro, a sua fé que deu origem ao mal que fizeram, mas o seu pecado e uma visão deturpada do que significa ser cristão, ou seja, um abuso do adjetivo cristão, que o reduziu a uma identidade étnica ou a ideias políticas, que ofuscou a Verdade revelada. Não devemos ser juízes das consciências daqueles que serão julgados por Deus, e muito menos podemos pensar que somos melhores do que eles ou que, nas suas circunstâncias, teríamos sido mais santos, mas podemos dizer que a verdade da fé cristã, quando vivida com toda a radicalidade, além de encher de alegria os que assim vivem, gera bons sentimentos, virtudes e paz. As divisões e as guerras ou a corrupção e a cedência a grupos de pressão resultam do afastamento da Verdade e do Amor que Deus é e não provêm da religião como, por vezes, se pretende.
Um testemunho deste afastamento da verdade de Deus está no facto de os cristãos, que deveriam viver entre eles a comunhão, estarem divididos em diversas igrejas. Há, infelizmente, muitas divisões entre os cristãos, mas também há quem ao longo da história se tenha batido pela reconciliação e, hoje, o ecumenismo, que tenta renovar a unidade da Igreja, é um movimento evidente e muito sério. Nem sempre é fácil e nem sempre é claro o que entendemos por unidade da Igreja. Uma coisa parece certa: a reconciliação não será fácil, nem pode ser superficial. O ecumenismo é muitas vezes – erradamente – entendido como uma proposta de aplanar as diferenças, relativizando aquilo em que se acredita, para chegar a um mínimo denominador comum entre as várias confissões cristãs. O autêntico ecumenismo, porém, não se confunde com este irenismo que, de resto, é mais filho da lógica de homogeneização de que já falámos, do que um desejo autêntico de reencontrar a comunhão com base na Verdade revelada. No dia 25 de Janeiro de 2011, no encerramento da semana da Unidade dos cristãos, o Papa Bento XVI sintetizou o que considera ser o verdadeiro ecumenismo em duas frases:
“Temos de estar agradecidos porque no curso das últimas décadas o movimento ecuménico, surgido «sob o impulso da graça do Espírito Santo» (Concílio Vaticano II, UR 1), deu passos significativos, tornando possível atingir convergências encorajadoras e consensos sobre diversos aspetos, desenvolvendo entre as Igrejas e as Comunidades eclesiais relações de estima e de respeito recíproco, assim como de colaboração concreta diante dos desafios do mundo contemporâneo.
Todavia, sabemos bem que ainda estamos distantes daquela unidade pela qual Cristo rezou e que encontramos refletida no retrato da primeira comunidade de Jerusalém. (…) A busca do restabelecimento da unidade entre os cristãos divididos não pode, portanto, reduzir-se a um reconhecimento das diferenças recíprocas, nem a conseguir uma convivência pacífica: aquilo a que aspiramos é a unidade pela qual o próprio Cristo rezou e que, por sua natureza, se manifesta na comunhão da fé, dos sacramentos e do ministério. O caminho rumo a esta unidade deve ser sentido como um imperativo moral, resposta a um chamamento específico do Senhor. Por isso, é necessário vencer a tentação da resignação e do pessimismo, que é falta de confiança no poder do Espírito Santo. O nosso dever consiste em continuarmos a percorrer com paixão o caminho rumo àquela meta, com um diálogo sério e rigoroso, para aprofundar o comum património teológico, litúrgico e espiritual; com o conhecimento recíproco; com a formação ecuménica das novas gerações; e, sobretudo, com a conversão do coração e com a oração.” (Roma, 25 Janeiro 2011).

A divisão da Igreja é expressão do pecado original que, desde Caim e Abel, levou os irmãos a disputarem entre si. Mas, ainda que marcados pela propensão para a discórdia, não podemos desistir dos caminhos da unidade da Igreja. Ela é possível, não como uma utopia ao alcance da conquista dos homens, mas como um fruto da Redenção, da vitória de Deus sobre o pecado. Podemos dizer que o ecumenismo é, sem dúvida, um dos maiores e mais importantes desafios da Igreja no nosso tempo.


IV – NA ORIGEM DOS DESAFIOS DA CULTURA CONTEMPORÂNEA
Olhemos agora para o modo de viver e de se entender a vida na Europa de hoje. A realidade é complexa e não pode ser sintetizada em poucas palavras, mas há alguns aspetos da situação atual que podemos identificar como herança cristã, mesmo que vividos num ambiente que deixou de lado a referência a Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, sobressaem outros elementos que são desafios para a Igreja.
Constatamos que há, no mundo, muitas coisas boas a acontecer. O sistema económico, apesar de todas as suas contradições e injustiças, tem permitido que haja hoje menos gente com fome. Cresce também no mundo a consciência de uma proximidade de todo o género humano, como nunca se tinha sequer pensado possível. O desenvolvimento científico e tecnológico trouxe inúmeras coisas boas ao nosso quotidiano e melhorou a qualidade de vida. Também é bastante evidente que a Europa ocidental, onde as guerras pareciam ser uma coisa normal até à Segunda Grande Guerra, atravessou um período de setenta anos de uma certa paz (não se pode dizer que a Europa viveu em paz, porque havia terrorismo, por exemplo, na Irlanda do Norte, na Itália e em Espanha, e não podemos esquecer que para lá do muro de Berlim se vivia debaixo de regimes comunistas onde não imperava a paz, mas a perseguição e o medo). Com o fim do comunismo no Leste da Europa, surgiu uma nova esperança de paz, mas, de facto, houve guerra grave na Bósnia, e, agora, assistimos com grande preocupação ao conflito na Ucrânia.
Apesar de todo o bem que há hoje, dissemina-se a sensação de que não estamos melhor, e a existência de guerras tornou claro que a paz nunca é uma aquisição definitiva dentro da história. Sente-se por todo o lado uma violência escondida e a falta de paz, interior ou nas famílias, mostra que nos está a escapar o essencial e que se estão a procurar soluções para as crises dentro do mesmo horizonte cultural que há várias décadas domina, com a sua visão materialista. Hoje, quando se fala de crise, já muita gente reconhece que esta não é só económica, e percebe que é fundamentalmente uma crise moral e, antes ainda, antropológica, cuja raiz é a crise da fé. Por isso, devemos olhar com um olhar crítico para a sociedade. Alguns dirão que somos pessimistas, mas, de facto, a nossa fé ensina-nos que o mundo, por si, não é capaz de nos dar a felicidade, e a nossa esperança não se limita a este mundo. Ser capaz de apontar os erros do nosso tempo não é pessimismo, é tomada de consciência da missão. Além do mais, os cristãos sabem que a esperança não está nas forças deste mundo, mas em Deus. De olhos postos na promessa da eternidade, não desistem do mundo presente; antes descobrem critérios sólidos e imutáveis para guiar a sua ação aqui na terra.
Vejamos agora três aspetos da nossa cultura que considero altamente críticos.

a) O secularismo
Uma das características mais relevantes da vida moderna é o secularismo. Deus é tolerado, mas foi relevado para um Céu distante. Ainda muita gente acredita que deu origem a toda a criação, mas nem todos reconhecem ser possível uma relação com Ele. Quando muito, pensam que, depois da morte, cada um terá de se confrontar com o divino. A imagem de Deus é a de Alguém distante e indiferente, pelo que, mesmo que O tenhamos de encontrar na morte, considera-se que o que aqui fazemos nem é nunca muito grave nem tem algum mérito para ser premiado. Este Deus distante é, além do mais, um Deus solitário, um primeiro motor, como diria Aristóteles, mas nada mais.
Pelo contrário, o que Jesus revelou sobre a comunhão entre Pai, Filho e Espírito Santo, é precisamente que Deus não é uma mónada incomunicável. Vemos que o testemunho de um povo que se sabe acompanhado por Deus desde Abraão, mas especialmente desde que o próprio Deus Se fez homem, dá muita importância a Deus, mas também à dignidade humana. É fundamental recordar que uma das consequências da fé cristã é a afirmação da dignidade da pessoa humana, criada à imagem de Deus, que o próprio Deus não hesitou em assumir para si para salvar o género humano, e que está chamada a gozar no Céu da intimidade divina.
A verdadeira identidade da pessoa implica a sua relação com Deus, mas daí nasce também a relação com os outros homens e mulheres. Estas verdades sobre Deus e sobre a pessoa humana, tornaram-se hoje estranhas e parece que não têm direito a estar na vida pública. A religião e a forma como, a partir da relação com Deus, se olha a vida é agora, segundo a opinião dominante – não necessariamente maioritária –, algo que pertence à vida privada, ao reino da ilusão, não da realidade. Este ateísmo prático, que pretende criar uma sociedade neutra em relação à religião, é, de facto, o grande desafio dos nossos tempos. Um desafio que a Igreja sente ser uma prioridade. É preciso, porém, sentir bem fundo o drama do secularismo para se começar a contrariar a sua hegemonia cultural.

b) Relação com a Tradição
Muito ligado a este desafio, mas com alguns traços específicos, é a relação com a Tradição. Para lá de lutas entre conservadores e progressistas que podem ser apenas questões de sensibilidade, é importante ter bem presente que um país ou, neste caso, um continente e uma civilização, para ter um futuro mais desenvolvido, precisa de cultivar a relação com o seu passado e com os desafios presentes. Quando a relação do presente com a Tradição é harmoniosa, há espaço para o desenvolvimento integral da pessoa e da sociedade. Quando se pretende cortar com o passado, julgando que o progresso consiste em rutura – ou, no extremo oposto, quando se quer voltar ao passado, negando o desenvolvimento – é impossível crescer. É típico do adolescente achar que pode começar tudo sem fazer caso do que recebe dos pais. E é típico da pessoa insegura ter medo da mudança. Pelo contrário, é próprio do cristão europeu – ou deveria ser – olhar com ousadia para o futuro, agradecido pelo passado e com vontade de responder aos desafios do presente. O Papa Francisco tem defendido recorrentemente que, na Igreja, mas também na sociedade em geral, é preciso manter os laços com o passado. Já o seu predecessor falava da necessidade de uma hermenêutica da continuidade para se perceber a fé e a vida. Ou seja, defendia a existência de uma Tradição viva.
A Tradição significa que recebemos uma proposta de vida através da comunidade onde estamos inseridos, que cada um de nós deve acolher e atualizar, e assim contribuir com o seu génio para que os vindouros possam herdar uma proposta viva que tem raízes mais antigas, mas que não ficou morta como um fóssil. Será importante para a Europa, como a Igreja, a vários níveis e em muitas ocasiões, tem dito, acolher a Tradição que recebemos para continuarmos a crescer, e não anular tudo aquilo que a nossa cultura europeia já tinha descoberto, em grande parte graças à fé cristã, como a centralidade da família fundada num matrimónio, a importância da verdade e da honestidade nas relações sociais e comerciais, a compreensão da vida comunitária como expressão do amor de uns pelos outros, a sensibilidade pelos mais desfavorecidos, a vontade de promover o desenvolvimento e de participar na continuação da obra de Deus através do trabalho, a atenção à responsabilidade de se cuidar da natureza e de todas as criaturas como administrador dos bens da natureza, etc.

c) Verdade e Liberdade
O terceiro aspeto da chamada luta cultural para o qual queria chamar a atenção tem que ver com a liberdade e a sua relação com a verdade. Esta questão tem na base uma outra, que se tornou essencial neste tempo, quando tantas ideologias pretendem reinventar o ser humano: afinal o que é o homem? Só uma sã antropologia poderá fundamentar uma moral e dar pistas para saber o que é e como usar a liberdade. Será a liberdade apenas a capacidade de fazer o que apetece? Será a liberdade adversária da verdade, já que esta introduz um juízo que reconhece que há coisas certas e outras erradas? Fará sentido dizer que a liberdade pessoal está limitada pelo outro, como se retira da famosa frase: “a minha liberdade termina onde começa a do outro”? Nesse caso, não será o outro visto como um empecilho à minha liberdade? Ou, pelo contrário, a liberdade alcança a sua plenitude na relação com os outros e está ligada à verdade? O Concílio Vaticano II recordava, na Constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo, que “o homem, única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma, não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo” (GS 24). Não o egoísmo, mas o amor mostra a verdadeira grandeza da liberdade. A pessoa mais livre é aquela que se consegue dar a si mesma pelos outros! Que não está impedida por medos, vícios ou egoísmos a dar-se. E Jesus disse algo que a cultura que se inspira na fé cristã tem como evidente: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8, 32). Esta é uma questão fundamental: ou a liberdade se liga à verdade e ao amor, ou perde a sua base e desfaz-se. Surge, então, a questão: é possível ser-se livre se não houver um Deus que nos julga a todos independentemente do “poder” que temos neste mundo? Ou o homem é independente de Deus – e, por isso, de tudo – e a sua vontade é a última referência ética? Pode-se fazer tudo o que se consegue fazer? Ou há uma verdade anterior e que deve conduzir a liberdade e a vontade? A verdade não se pode impor a seres cuja natureza é racional e livre. Como bem lembrou o Concílio Vaticano II na Declaração sobre a Liberdade religiosa: “Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coacção, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites.” (Concílio Vaticano II, Dignitatis Humanae, 2).
Ainda que alguém consiga obrigar outra pessoa a dizer ou a fazer alguma coisa usando a força, o coração humano só acolhe a verdade se o fizer livremente. Foi assim que Deus nos criou. Mas, por isso mesmo, para se defender a liberdade, é preciso defender a verdade e, para se defender a verdade, é preciso reconhecer que esta é anterior a nós e não uma nossa construção. Este tem sido um dos grandes desafios da Igreja dos tempos da pós-modernidade. Mesmo que seja difícil dizer o que é a verdade, creio que todos estão de acordo em reconhecer o que ela não é. A verdade não se confunde com a mentira, nem com a aparência, nem com o engano, nem com a simples opinião. Por isso, ela é algo que devemos procurar incessantemente; requer que sobre tudo se faça um discernimento, precisa de se tornar experiência e certeza.
Os cristãos vão mais longe e percebem que a verdade não é só uma questão de teoria do conhecimento. Ela diz, por um lado, que todos os homens, simplesmente porque isso é parte da sua humanidade, procuram conhecer a verdade e não se satisfazem enquanto não chegarem a ela. Por outro lado, a Igreja também afirma que a Verdade que explica toda a realidade, é uma pessoa: Jesus Cristo que acreditamos estar vivo e presente na Igreja. É, por isso, que a declaração do Concílio também diz: “afirma o sagrado Concílio que o próprio Deus deu a conhecer ao género humano o caminho pelo qual, servindo-O, os homens se podem salvar e alcançar a felicidade em Cristo. Acreditamos que esta única religião verdadeira se encontra na Igreja católica e apostólica, à qual o Senhor Jesus confiou o encargo de a levar a todos os homens,” (Concílio Vaticano II, Dignitatis Humanae, 1)

A Europa precisa de voltar a reconhecer a origem divina da Verdade e deixar de pensar que a verdade se opõe à liberdade. Só com a ousadia de procurar – certos de que vale a pena essa procura – a Verdade e fazendo a experiência de que essa verdade liberta, é que se poderá pensar na Europa como um espaço de promoção da liberdade. Sem verdade sobre apenas a violência, em que cada um vê no outro uma ameaça, e em que se considerará verdade coisas que são, entre si, opostas.


V – COMO OS DESAFIOS SE APRESENTAM
A meu ver, o que acabei de sublinhar são os desafios fundamentais que confrontam a nossa civilização. Depois, a partir destas questões, surgem muitas outras. Não se pense, porém, que todos os problemas que temos hoje são apenas de hoje e que antigamente era tudo bom. Bom e mau, santos e pecadores, mentira e verdade sempre coexistiram na história e sempre foram debatidos. Mas hoje, porque o drama toca aspetos basilares da cultura e da identidade humana, os efeitos são também, em certo sentido, mais devastadores.

a) Vida e família
A este propósito, é preciso fazer uma menção especial às grandes questões da vida e da família. Sem o reconhecimento da dignidade da vida humana, e sem a valorização da família, a sociedade não sobrevive. É triste, e é um sinal estranho, que haja na nossa sociedade uma anuência generalizada ao aborto. Como se matar milhões de crianças ainda não nascidas fosse uma coisa “natural”, como se houvesse pessoas de primeira (as nascidas) e de segunda (as não nascidas), como se fosse um direito que uns têm sobre a vida dos outros. O aborto é terrível para as crianças, mas também para as mães que naturalmente sentem o filho como um dom, mas acabam levadas e considerá-lo uma ameaça. As mães precisam muito de ajuda, não que se lhes tire o filho. Precisam de ser apoiadas no exercício da maternidade.
Não menos terrível é o facto de haver quem, sem problemas de consciência, promova e defenda o aborto como solução para alguns problemas, e de grassar na sociedade um silêncio cúmplice, que não se revolta quando vê às suas portas, nos seus hospitais ou em “pseudo- clínicas” junto das suas casas, o aborto ser praticado e subsidiado, em vez de os recursos do Estado serem utilizados para ajudar essas famílias, as mães e as crianças, a ultrapassar os momentos de desespero e a lograr uma vida digna. Este é o maior dos paradoxos da nossa sociedade, é o sinal evidente do seu estado moribundo. Pensar que, segundo a insuspeita Organização Mundial de Saúde, cerca de 73 milhões de crianças por ano perdem a vida pelo aborto – ou seja, mais de 1 em cada 4 conceções – é assustador, não só pelo destino das crianças, por todo o potencial humano que impedimos de se manifestar, mas também pelo modo como a generalização desta prática inquina o nosso próprio olhar sobre a vida, contaminando-nos com um entorpecimento coletivo e com uma falta de amor à vida que afeta toda a vida social.
A cultura da vida liga-se, como todos reconhecem, à cultura da família. Se o núcleo da vida familiar é o amor, a família torna-se um espaço seguro, onde todos são amado e o cuidado da vida de cada um é prioritário. Acolher os que estão para nascer, cuidar dos que precisam de ajuda, apoiar os idosos, enquadrar numa rede de relações amigas os deficientes, educar as crianças, ser rede de apoio quando há pobreza ou desemprego – são tudo aspetos da vida normal de uma família que, quando posta em crise, deixam de existir.
Ora, os pilares fundamentais da família têm sido atacados sistematicamente. O amor que deveria levar ao sacrifício pelo outro, à imagem do que Jesus fez por nós, é hoje visto como um simples sentimento ou prazer irracional e incompatível com o sacrifício, o que leva a que cada um só veja os outros como um bem se isso o fizer sentir-se bem. A diversidade sexual, que indica a complementaridade e a fecundidade, é considerada uma ideia cultural que a ideologia do género procura contrariar com a ajuda de donativos milionários que querem alterar a realidade da natureza humana. A fidelidade, que era um ideal de todos os casamentos, deixa de ser uma responsabilidade e passa a ser uma possibilidade que deixa de ser necessária quando há obstáculos. A indissolubilidade, que assegurava a estabilidade da família e a perenidade dos seus vínculos, para que as crianças tivessem um lar enquanto crescem e os idosos não estivessem sozinhos, é considerada uma proposta que corta com a liberdade e deixa de ser um bem a procurar. Os filhos, que são um dom, passam muitas vezes a ser pensados como algo que se escolhe quando e como se quer ter.
Graças a Deus, não é tudo assim e muitas famílias vivem com naturalidade e simplicidade a verdade da família. Sem isso, de resto, a sociedade já se teria desmoronado. Mas há uma pressão ideológica que tenta levar as pessoas a aderirem à mudança cultural, como se a cultura pudesse alterar a natureza e, em vez de ajudar a viver, se tornasse um projeto de mudança, não só de paradigma, mas da realidade em si. Deixar de pensar no bem da família é um sinal evidente da decadência em que o mundo ocidental vive. Até pode ser que economicamente as coisas estejam melhores, mas, no tempo, como já se pode ir vendo, uma sociedade que não cuida da família é insustentável e mesmo economicamente irá ter consequências dramáticas.

b) Educação
Vale a pena, ainda que apenas brevemente, referir a questão da educação, que está tão intimamente ligada ao tema da família. A educação leva as crianças e os jovens a serem capazes de abraçar a realidade. Não é simplesmente uma questão de os preparar para um trabalho, ou de lhes dar informações, mas de os tornar adultos felizes capazes de levar por diante as suas vidas. Hoje, um dos problemas mais complicados na educação é a falta de protagonismo das famílias e de adultos maduros e com uma vida sã. A ideia de que a educação é competência de técnicos e de que os pais não têm uma capacidade inata para educar faz esquecer que as crianças crescem melhor num ambiente marcado pelo amor. Claro que esta competência dos pais implica também que eles assumam a responsabilidade, mas, quando se parte do princípio de que eles não são competentes, também se cultiva neles o medo de assumirem a responsabilidade. Educar para que a pessoa seja pessoa livre e responsável e, por isso, capaz de se dar – i.e., de amar – é um dos maiores desafios europeus do nosso tempo. Queremos um futuro europeu cheio de pessoas livres e capazes de gerar laços, ou de pessoas meramente engenhosas? Quem será o europeu do futuro? Uma pessoa adulta, capaz de tomar decisões e de avaliar bem as situações? Ou alguém que sabe usar tecnologias e que desiste de pensar sobre o sentido da vida? Uma pessoa feliz com uma vida pessoal e comunitária bem enquadrada? Ou uma pessoa distraída, que procura apenas fugir dos problemas e crescer economicamente para consumir mais produtos, ainda que não precise deles?
A Europa foi, ao longo da sua história e ainda hoje, pioneira na educação, mas, para que possa continuar a sê-lo, precisa de perceber a necessidade de pessoas maduras que não pretendam apenas ter o poder de fazer o que lhes apetece da vida, mas que se empenhem em descobrir o sentido da vida e em contribuir para a continuação da obra de Deus. Esta educação implica ajudar a pessoa a saber-se criada e a não se julgar “senhora absoluta de si”, por isso, ela precisa de ser envolvida num ambiente que não descarte as perguntas fundamentais do coração humano – ou seja, que não trate a dimensão religiosa como uma inimiga de que se desconfia, mas antes como um campo imprescindível da humana existência.

É deste ambiente que nasce a consciência de se pertencer a um povo e, consequentemente, de se ter uma missão na vida. Hoje, a ideia de que a pessoa é totalmente autónoma e não deve responder senão a si mesma tem levado a que o horizonte da educação seja reduzido ao mero ensino de técnicas sem moral. Parece mesmo que se tenta anular qualquer referência a um fundamento superior da moral e que ensinar o bem e o mal é visto como uma limitação da vontade e da autonomia individual. Ora, a Europa toda, do leste ao ocidente, está a atravessar uma gravíssima crise educativa. Sobre o leste, ainda pendem os escombros da herança comunista; a oeste, sofre-se pela força do secularismo, que pretende reduzir a pessoa ao que faz e consome.
A Igreja, que foi sempre protagonista da educação – promove a educação familiar, institui escolas, acompanha as pessoas ao longo da vida –, sente que este é um grande desafio, mas também percebe que a batalha pela liberdade de educação, que a permita continuar a educar como considera importante, se tornou essencial. Os países comunistas fizeram a experiência de ter uma educação controlada pelo Estado. Mas os Estados liberais do ocidente europeu estão a seguir precisamente os mesmos passos e querem dominar a educação. Todos sabem que, através do poder educativo, se consegue controlar o futuro de um país. A Igreja é um dos obstáculos à uniformização da sociedade, mas não promove a liberdade só para a deixarem fazer como quer, ela está certa de que sem liberdade nunca haverá boa educação. Neste sentido, a luta pela liberdade de educação – a liberdade de receber a educação de acordo com as convicções e os princípios morais dos pais e de propor um tipo de ensino – é um dos grandes desafios na Europa de hoje.

c) Demografia
Um ulterior sinal, que é também efeito da desorientação em que a Europa se encontra, é a crise demográfica. O Inverno demográfico, como se tem chamado ao fenómeno da diminuição dos nascimentos e que implicará uma diminuição da população dentro de alguns anos, quando o aumento da longevidade deixar de conseguir cobrir a falta de natalidade, é um problema gravíssimo ao qual se começa agora a dar alguma atenção. Algumas causas são evidentes, como o afastamento das famílias alargadas por causa da migração para as grandes cidades, o tamanho das casas, o facto de ambos os pais terem de trabalhar e nem sempre conseguirem ter as ajudas necessárias para criar os filhos, e também um certo ambiente de instabilidade nas relações matrimoniais que levam muitos a ter medo de ter filhos. Mas, além destas razões, é preciso reconhecer que as raízes desta crise generalizada está na própria ideia que fazemos do que é o ser humano e a sua felicidade. É sempre injusto buscar explicações para fenómenos que, apesar de serem comuns a muitas pessoas, são motivadas por muitas razões diferentes. Contudo, é bom evocar os problema gerais para provocar cada um a uma reflexão, sem que ninguém tenha de sentir-se acusado.

d) Multiculturalidade
Surgem, agora também outras graves crises, como sejam as que se relacionam com o tema das migrações. As sociedades europeias são cada vez mais multiculturais. Houve um tempo em que foi possível refletir e, com calma, procurar soluções para a crescente presença de pessoas de outras culturas nas nossas cidades. Assim, era comum falar-se da Europa como uma sociedade pluricultural. Aliás, em Portugal, por causa da nossa história e das relações com África, Ásia e América, este dado é intrínseco à nossa identidade. Porém, quando se percebeu que esse conceito poderia indicar que as várias culturas viviam separadas e sem interligação, percebeu-se que era mais consonante com uma lógica de integração o conceito de multiculturalidade. A pluriculturalidade seria apenas a constatação de uma presença no mesmo território de várias culturas. Mas a sociedade precisa de relações e os vizinhos, cedo ou tarde, terão de interagir. Assim, é melhor falar de uma sociedade multicultural, como aquela em que as várias culturas estão presentes e formam esse mosaico cultural que são as nossas sociedades através de relações várias, a ponto de se poder dizer que cada uma delas pertence ao todo. Em alguns países, este conceito progrediu ainda mais até se falar de interculturalidade – ou, como se preferiu em Portugal, entre culturas –, para dizer que as pessoas e comunidades das várias culturas dialogam entre si e influenciam-se reciprocamente. Deste modo, era possível, por um lado, respeitar e até valorizar cada cultura sem forçar ninguém a adaptar-se, e, por outro lado, reconhecer a diversidade das culturas e a importância do encontro entre elas. Claro que estas questões se colocam quando as ondas de migrantes e de refugiados são pequenas e é possível organizar estruturas – escolas, grupos, bairros – capazes de potenciar este diálogo.
Ora, a perceção do que está a acontecer hoje em muitos países da Europa é diferente. Para colmatar a sua própria crise demográfica, a Europa tem procurado mão-de-obra nos países mais pobres. Estes países, regra geral do hemisfério sul, ao mesmo tempo que vêem partir dos mais válidos que têm nos seus países, encontram, também, obstáculos estruturais ao seu desenvolvimento, quase que parecendo, por vezes, que há uma intencionalidade em que permaneçam pobres, para que os países ricos possam continuar a contar com matérias-primas a bom preço. Geram-se assim grandes fluxos migratórios que têm a Europa como destino, em grande parte em busca de uma vida paradisíaca em que seja possível até mandar dinheiro para a família que fica nos países de origem.
Contudo, por causa do crescente individualismo que marca a cultura ocidental e que tende a olhar o outro como potencial concorrente, e também devido à debilidade cultural de uma sociedade, como a europeia, que quis cortar com as suas raízes, sentimos hoje uma grande dificuldade em promover o diálogo cultural. Deste modo, crescem as tensões, e também uma certa desorientação generalizada. Não basta dizer que é moralmente preciso acolher. Há um processo que tem anos a dizer que cada um deve cuidar de si e estar atento ao perigo que o outro pode ser que as comunidades locais se sentem ameaçadas. Não se cura de um dia para o outro este medo, e é preciso que a sociedade que acolhe possa ser também uma proposta de vida completa, coisa que a Europa é cada vez menos, por causa das guerras internas contra a identidade cristã que a marcava e que permitia ao mesmo tempo acolher e propor. Agora parece que, se houver uma proposta aos que chegam que diga como se vive na Europa se viola a liberdade de quem chega, e teme-se, no polo oposto, que quem acolhe se deixe manipular. A confusão e o medo generalizam-se. E requerem um olhar atento para o que vai acontecendo em comunidades cristãs, onde estes dois aspectos, dar aos boas vindas e oferecer uma proposta de vida que olhe para a pessoa, para a comunidade e para a religião como um todo.

Ora, a Igreja, nisto como noutras áreas, lembra que a realidade é complexa, mas também que há uma ordem moral natural que deve ser seguida. Ela olha para as várias questões da vida e da sociedade, desde a demografia à família, a economia, a multiculturalidade, a educação, a liberdade, o progresso, os temas ambientais, como questões correlacionadas. Tudo importa ter em consideração, mas há questões mais graves do que outras. Há temas que precisam de ser resolvidos antes de outros, há valores que são basilares e outros que podem variar com as circunstâncias. Não fazer estas distinções impede uma abordagem eficaz à complexidade da vida e da cultura. Podemos dizer que há várias crises na Europa, mas é preciso dizer que, mais grave do que a crise económica e a crise ambiental, é a crise moral. Esta, contudo, acontece porque se perdeu de vista o que é a vida humana quando se passou a pensar a vida sem Deus e a pessoa como indivíduo e não como ser familiar e social.


VI – Da justiça social ao desenvolvimento integral
Há alguns anos, era costume pensar que, na Igreja, progressistas e conservadores se distinguiam nos debates públicos porque os primeiros falavam de justiça social e os segundos de família e vida. Ou, como alguns pensavam, uns falavam da vida pública e outros da vida privada. E, se quisermos ir ainda mais longe com os estereótipos, os ricos eram de direita e centravam-se na vida privada porque tinham muitas coisas; os pobres eram de esquerda e, porque precisavam de ajuda do Estado, centravam a atenção nos deveres sociais.
Ora, esta divisão sempre foi – e agora, é-o ainda mais – um simplismo. Ela supõe a aceitação de alguns frutos do processo de secularização que, tendo como ponto de partida a autonomização da vida pública face a Deus, considerava que tudo o que pertencesse à dimensão religiosa e moral deveria ser apartado das questões públicas e sociais e remetido ao foro exclusivamente privado. Não admira, por isso, que em tantos temas da vida humana, as alas mais à esquerda da sociedade estão aliadas às mais liberais, porque uns e outros percebem que é preciso romper com as raízes cristãs para conseguirem levar por diante as suas ideologias.
Na realidade, a pessoa é um todo e os outros – a sociedade – não lhe são um acrescento, antes pertencem à própria identidade de cada pessoa. O eu interior e espiritual não pode ser separado do eu exterior e social. Cuidar da vida espiritual seria uma falsidade se a pessoa que quer viver em comunhão com Deus não se colocasse ao serviço dos outros; por outro lado, o serviço aos outros e o cuidado pelo bem-estar de todos seria frágil e sem motivação se lhe faltasse o significado espiritual. Tal como seria estranho defender a família e desprezar os pobres, ou procurar que haja uma justiça social que olhe para os pobres em ao mesmo tempo, achar que há pessoas – concebidas mas não nascidas – que podem ser, como diz o Papa Francisco, descartadas. Hoje, portanto, quem ainda faz esta separação está ultrapassado. A importância do trabalho e a luta contra o desemprego, a promoção da justiça salarial, a defesa dos mais desfavorecidos, são questões que não se desligam, antes precisam, da preocupação pela pessoa e pela família, pela espiritualidade e pela moralidade do amor e da sexualidade.
É um desafio para a Europa recuperar esta unidade e é uma urgência para a Igreja que quer estar presente onde as pessoas vivem e, sobretudo, junto dos que mais sofrem, promover esta unidade.
A Igreja mostra estar atenta ao desafio através da palavra do magistério, mas sobretudo da ação dos seus membros em obras concretas de ajuda aos que precisam – obras de educação, obras de ajuda a carenciados, a crianças, a idosos, obras de assistência ou de promoção da dignidade, etc. – , mas também pelo modo como os seus membros estão ativos na sociedade, apontando para Deus como destino de tudo, e recordando a verdade da pessoa humana. Por isso, a política é hoje um grande desafio para a Igreja. Em muitos países da Europa, a Igreja tem-se esforçado por educar para a vida política jovens que sejam pessoas de fé, convictos e disponíveis a contribuir para o bem comum. Sabemos bem que nem sempre isso é fácil, mas é, sem dúvida, uma urgência. Para promover esta ação política não é necessário ter partidos católicos, mesmo que estes possam ter o seu lugar em certas circunstâncias ou épocas, mas é preciso que, por um lado, os católicos na política se sintam apoiados e ajudados pela comunidade e até pela hierarquia, e é preciso que sejam formados para que compreendam com a luz do Evangelho a sociedade e se sinta a fazer a vontade de Deus, preferindo a fidelidade a Deus e ao bem a favores ou carreiras.




VII – O desafio essencial
Por tudo o que acabámos de dizer, percebemos que vivemos numa época em que a Igreja não pode estar adormecida ou ao serviço do “poder”, já que este está decidido a fazer outro caminho distinto do que Jesus Cristo ensinou. A missão da Igreja nasce da sua identidade como povo de Deus e da vocação de levar o Evangelho a todos os homens. Estes desafios que aqui apresentámos são apenas alguns entre os muitos que se levantam à nossa sociedade e à Igreja. Seria possível falar ainda da revolução tecnológica, das questões ligadas ao ambiente, das questões legislativas e das ideologias que aí se refletem, tal como poderíamos falar de grupos concretos com desafios particulares, como os jovens e os idosos. Julgo que fica claro que a missão da Igreja de hoje não é a de tentar manter o número de pessoas que participam na missa à custa de abreviar o Evangelho ou escondendo as suas exigências, nem a de ser um simples serviço social ou uma instituição moralizadora da sociedade.
A nossa missão é levar Deus à vida de todos os homens e mulheres. “Buscai antes de mais o reino de Deus e tudo o mais vos será dado” (Mt 6, 33). Começará por mostrar a Beleza da Verdade criada e da obra de Deus para nos salvar, é isso que abre o coração e o leva a maravilhar-se com o amor de Deus que nos salvou do pecado e da morte através da Encarnação que atinge o seu ponto culminante na morte e ressurreição do Filho de Deus feito homem.
A primeira responsabilidade do cristão é uma ação de graças, que nasce do reconhecimento de ser amado e de ter recebido uma vida nova, sendo, por isso, pela fé, um homem novo que já não é apenas cidadão deste mundo, mas concidadão dos santos no Céu. Da consciência da sua identidade nasce a missão de ir por todo o mundo anunciar e comunicar esta vida.
Este é o desafio essencial, e a falta de fé é o primeiro e mais profundo problema de uma cultura que quer ter futuro. É quando se desliga de Deus que se é levado a considerar possível o aborto ou a eutanásia, ou se reduz a noção de amor humano a um sentimento volátil, ou ainda, que se gera uma cultura consumista e hedonista, que não promove a justiça nem a solidariedade entre povos, que só olha para o imediato, sem se lembrar das raízes e sem ter presente a responsabilidade para com as próximas gerações.
Daqui decorre que o primeiro direito pelo qual a Igreja se bate seja o da liberdade religiosa, não apenas entendida como liberdade de culto dentro das Igrejas ou de consciência, mas como direito a estar presente no mundo como Igreja, como povo de Deus, podendo organizar-se como quer para expressar os seus pontos de vistas sem ser discriminada. Estou certo que a presença da Igreja viva e livre é um verdadeiro promotor de solidariedade, de justiça, de cultura, precisamente porque dá espaço à ação de Deus.
O grande desafio da Igreja na Europa, em síntese, é a Nova Evangelização. Por meio desta ação, a Igreja quer acordar os corações e as inteligências para que as pessoas se deem conta de serem chamadas para uma vida eterna, se reconheçam na sua plena dignidade e descubram as exigências que estão presentes no seu coração criado por Deus, as exigências de Beleza, de Verdade, de Bem, de Justiça, ou seja, a exigência de infinito que só Deus pode saciar.
Mas não basta acordar o sentido religioso das pessoas, ainda que isso seja, hoje em dia, fundamental para deixarmos de estar presos ao secularismo individualista. É preciso mais, porque o específico do cristão é ter encontrado Jesus Cristo, pelo que a sua missão concentra- se no mostrar que Deus respondeu ao nosso pedido de ajuda e mostrou o Seu Rosto, como pediam os salmistas do Antigo Testamento, visitando-nos e libertando a nossa vida de tudo o que a destrói. É preciso mostrar que Deus não é um ausente no Céu à espera da nossa morte para nos falar, mas Alguém que entrou na nossa história. Anunciar Jesus Cristo, morto para nos salvar e ressuscitado, é claramente a essência da missão cristã, e seria uma grave perda reduzir a missão da Igreja ao anúncio de uma mensagem de Jesus ou dos valores do Evangelho desligados da possibilidade de encontro com o próprio Jesus.
Estes são dois aspetos relacionados com a missão, mas que decorrem do encontro com Jesus e que perdem a sua razão de ser sem esta relação viva. Jesus, morto na cruz para nos salvar, está vivo e, por isso, o que a Igreja anuncia não é uma ideia piedosa ou uma moralidade exigente, mas um facto histórico. Meta-histórico, porque abre os que vivem no tempo ao que vai para lá do tempo, mas completamente histórico porque acontece no tempo. Jesus é nosso contemporâneo porque está vivo e presente e não apenas porque a sua mensagem ainda tem atualidade. Não é uma personagem do passado que nos deixou uma série de ensinamentos ou que inspira alguns valores sociais. Jesus está presente, não é uma simples força espiritual, nem é uma ideia ou uma energia. Ele é uma Pessoa divina, que se fez homem sem deixar de ser divino. Ele pode ser encontrado e com Ele pode-se ter uma relação de amizade, de comunhão viva. Esta certeza, que nasce da experiência da Igreja e que se reflete na vida dos santos, é a essência do cristianismo.
A comunhão com Jesus é profundamente pessoal, mas, por isso mesmo, não é uma experiência individual, é uma experiência comunitária vivida na pertença pessoal ao corpo que é a Igreja. A evangelização, que pretende despertar as exigências fundamentais do coração humano e que mostra Jesus vivo presente, conduz sempre a pessoa a Cristo gerando uma ligação à Igreja, onde o crente participa nos sacramentos, quais lugares por excelência para o encontro palpável com Jesus, e experimenta laços de amizade enraizados no próprio Espírito de Deus.
A Igreja é o Corpo de Cristo; o cristão, por isso, para ser membro desse Corpo, é um homem de Igreja, que ama a Igreja, que se deixa educar por ela e convida todos a amá-la. A evangelização não acontece sem o encontro pessoal de cada um com Cristo, para que cada um na sua liberdade descubra o rosto de Deus e adira à Sua proposta de amor, mas para que estas pessoas que comunicam a fé existam é preciso que haja lugares vivos da fé, é preciso a Igreja viva. Sem as comunidades vivas, as paróquias e os movimentos, a experiência da Igreja não toca na vida das pessoas, e mesmo que tenha um discurso coerente e pertinente, permanece muito distante. É certo que muitas destas comunidades não se revestem, hoje, das mesmas formas institucionais que tiveram noutros tempos. Mas continua a haver uma série de requisitos para se poder ser Igreja e oferecer a possibilidade do encontro com Deus. Para pertencerem à Igreja Católica, as comunidades precisam de estar em comunhão com o Papa e com os bispos que estão em comunhão com ele, precisam de ser espaços de oração e de encontro com a experiência de Deus, precisam de ser elos de uma Tradição que, ininterruptamente desde os Apóstolos até nós, vive do Espírito Santo, precisam de ser ativas na caridade, que vai desde o cuidado das famílias ao cuidado de todos os que precisam.
Ora tudo isso é possível e visível em todos os países europeus. Pode haver menos gente a ir à Missa, pode haver menos vocações e podem as famílias cristãs serem afetadas pelas mesmas crises que atacam os não crentes, mas em todos os países da Europa há cristãos e comunidades vivas, que não estão à margem do progresso e dos desafios, nem estão à espera de melhores tempos para agirem, pois enfrentam a vida tendo a certeza de estarem acompanhados pelo Espírito Santo.
Eis, em síntese, porque os cristãos, apesar dos muitos e graves desafios que o tempo lhes coloca, continuam a ser no nosso mundo pessoas de esperança, pois eles sabem que são amados por um Deus poderoso e bom, por um Deus que é um Pai que não desiste nem abandona os filhos mesmo quando estes procuram a felicidade longe d’Ele. A fé que cada cristão é convidado a abraçar pessoalmente faz experimentar a misericórdia divina e une a pessoa ao próprio Deus, e, por isso, enche o coração de paz e de paixão.

(Agradeço ao António Pedro Barreiros a revisão deste texto e os precisos contributos)