9 séculos depois… Portugal num capriccio *

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Annabela Rita **



É esta vertigem de “imagens que passam pela retina” nas galerias da História que constitui a imensa e apertada malha de “razão e mistério” de Portugal

Numa altura em que se nos afigura difícil nascer, viver, envelhecer e morrer em Portugal, com as respectivas dificuldades patenteadas nos media em geral, e os olhares das novas gerações se fixam hipnoticamente na vida lá fora, desejando-a, o que é “ser-se português” (não falo da “Arte de Ser Português”, de Teixeira de Pascoaes)?
A resposta actual bebe nas teorias das “comunidades imaginadas” (Benedict Anderson) e afins, racionalizadoras, dessacralizadoras, assentes em dados “objectivos” e “materiais” comuns promotores de um sentimento de unidade, identidade: a soberania, a história, a língua, o território, os mapas, os museus, o hino, a Constituição… uma construção de séculos analisada em mesa de anatomia.
Ora, com isso, ouvimos estudantes universitários afirmarem que “se sentem mais europeus do que portugueses”, demonstrando um conhecimento circunscrito à sua conjuntura. Para eles, “o passado é um país distante” (Sérgio Godinho) e desconhecido.
Se os dados “objectivos” e “materiais” potenciam o desinteresse jovem, quando entramos na tessitura do nosso imaginário tradicional, a magia e o fascínio captam-nos progressivamente e nós, oradores (professores, conferencistas…), tornamo-nos novas Sheerazades: ficam emocionalmente suspensos por esse mundo outro e surpreendente, prodigioso (Joaquim Fernandes), quimérico, ocult(ad)o. Entre ambas as percepções, gera-se o excesso e/ou carência identitária (Eduardo Lourenço) desse “Ser e Representação” (tema de reflexão desde a Filosofia Portuguesa a Miguel Real) em “labirinto da saudade” (Eduardo Lourenço).
Deixo os historiadores e sociólogos ponderarem os dados factuais da longa construção identitária nacional e os mitólogos fazerem uma arqueologia dos seus mitos e lendas. Seja-me permitido um capriccio sem Frescobaldi, Paganini ou Tchaikovsky ao fundo, assinalando o modo como o nosso imaginário se conforma e se exprime…

De antes da fundação de Portugal


Tudo começa à saída do mundo mediterrânico, fechado sobre si e a sua história lenta (F. Braudel), mítica e legendariamente embebida. No Promontório Sacro…
Tubal, filho de Jafet, cumprindo directrizes de Noé após o Dilúvio, aportou em Setúbal, que povoou, e foi sepultado no Promontório Sacro (Sagres), cultuado por toda a Tubália, local posteriormente interditado aos homens no notturno quotidiano, dedicado a Saturno e demais deidades, mas também a Hércules/Herácles.
Segue-se o rei Luso e a sua descendência e S. Vicente, que os corvos e o rei fundador trarão a Lisboa/Ulisseia, por onde passou Ulisses/Odisseu, que enlaçou Calipso (Santarém), de que resultou Ábidis (peninsular Moisés), e/ou a rainha-serpente Ofiússa, cujo movimento convulso criou as colinas de Lisboa.

Fac-simile dos primeiros fólios da História de Portugal, de Fernão de Oliveira,
escrita no século XVI, cuja narrativa começa no Dilúvio e factos imediatamente seguintes.
Fac-simile dos primeiros fólios da História de Portugal, de Fernão de Oliveira, escrita no século XVI, cuja narrativa começa no Dilúvio e factos imediatamente seguintes.

Desde a fundação de Portugal


O prodígio atravessa o território do Portus Cale expandido a rectângulo peninsular num tempo de cruzadas e cavalaria que o embebem de graálica hipótese… sob o adejar das “asas” dos Anjos entrevistados nas batalhas, homenageados com ordem militar-honorífica (de S. Miguel da Ala) e cronísticos.
O rei fundador, descendente, quiçá, do Imperador Clarimundo, parente acreditado do prestigiado S. Bernardo, é miraculosamente curado da paralisia das pernas, auspiciosamente autoinvestido cavaleiro, visionariamente investido por Cristo numa missão régia nacional e universalizante e, em simultâneo, “alçado rei” pelo seu exército, tornando Ourique, o selo pátrio da vitória e da fundação, mas também da expansão marítima…

Sob esse signo, o imaginário nacional embeberá a sua monumentalidade: os Mosteiros de Sta. Maria (Alcobaça) e de Sta. Maria da Vitória (Batalha), de Sta. Cruz (Coimbra) e dos Jerónimos (Lisboa), o Convento de Cristo (Tomar) e o do Buçaco ensaiam uma composição em que se projecta o chiaroscuro do jogo de espelhos com Os Lusíadas e entre estes, a junqueiria na Pátria (1896), Mensagem (1934), Tocata para dois clarins (1992), Uma Viagem à Índia (2010) … tudo expositivamente sinalizado no “Mundo Português” (1940) e no Portugal dos Pequenitos (Coimbra), com os Painéis de S. Vicente, cindido pelo reflexo dourado entre uma mensagem e uma investidura de missão.
A Estrela dos Reis Magos deslocara-se da oriental Belém para o Tejo, passando pela abóbada da Ínclita e graálica Geração (Batalha) e iluminando a expansão.

Adoração dos Magos, Grão Vasco (Museu Grão Vasco).
Adoração dos Magos, Grão Vasco (Museu Grão Vasco).


Na coreografia do Tejo, combinam-se a aventura e a prece. Almada Negreiros oferece-nos a sua história sinedóquica e simbólica nos painéis da “Nau Catrineta”, onde ecoa a popular e recolhida por Garrett, memento identitário de despedida e de acolhimento contra a eventual amnésia pela provação oceânica de Letes tingida.
E o Padrão dos Descobrimentos embebe a “Prece” (Fernando Pessoa) comunitária na ascensão dos heróis até à nau, símbolo, também, da existência. Prece acolhida e abraçada na outra margem do Tejo pelo Cristo-Rei, duplo do brasileiro, sinalizando esse cristianismo que insuflou e se inscreveu nas velas das caravelas alçadas por Neptuno no Planisfério de Almada, como por D. Manuel I na Carta Marina de Waldseemüller (1516) cavalgando triunfalmente um dos monstros fabulosos que ilustravam a cartografia da época.
Na “balança da Europa” (1830), Portugal reafirma, garrettianamente, a congénita “necessidade absoluta, forçosa, invencível” de ser livre que lhe cinzelou a acção desde a Nova Aliança fundacional, gravada no seu “Evangelho” (Fernão Lopes), retomada na Restauração, pluriartisticamente replicada.
Esse ADN nacional é simbolizado no signo-sinal do dragão no seu brasão inscrito a água em terra (ribeira de Odeleite), lusitano selo identitário (replicado do Cruzeiro de Vila Viçosa ao centro dos brasões no Palácio de Sintra, ao portal dos Jerónimos e à Sociedade Histórica, passando pelo elmo régio dos armoriais e no tarot português). E, nesse dragão fabuloso, espreitam as serpe(ente)s aladas sueva e celta e a de Moisés, insinuando a sucessão histórica, a fusão religiosa e a crística identificação nacional na literatura.
É esta vertigem de “imagens que passa[m] pela retina” (Camilo Pessanha) nas galerias da História – parcialmente evocadas por Júlio Dantas na longa convocatória através do Mosteiro da Batalha da sua conferência “Heroísmo” (1923) –, que constitui a imensa e apertada malha de “razão e mistério” de Portugal (António Quadros), figurações e emblemática de um ser pátrio, “S. Portugal em Ser”. É ela que identifica, afinal, o “(Des)conhecido” colectivo cujo túmulo se cultua: um Portugal na “balança da Europa” (1830) revisitado garrettianamente (1846), endoidecido de amnésia (Junqueiro), eruditamente consciencializado com António Quadros, emocionadamente psicanalizado por Eduardo Lourenço (1978), cenarizado em viagem de Saramago (1981) e luminosamente “morto” segundo Miguel Real (2008).
É esse “ser português” que devemos reanimar, reencantar contra o Desencantamento do Mundo (Marcel Gauchet), para sentirmos as mais profundas (des)razões que nos constituem como comunidade. Porque é ele que nos une, emociona e motiva, entretecendo tempos, espaços e figuras, tornando compreensíveis acções e factos.
Assim devemos entender e assimilar os nexos da patrimonialidade (i)material nacional, vestígios do que fomos, estímulos do que poderemos vir a ser (“do que tem sido e do que ora lhe convém ser na Nova Ordem”, segundo Garrett).
E só essa clara noção da anterioridade legitima e potencia, também, a mudança, a transformação. Ou, a não ser assim, subimos para uma “jangada de pedra” em promontório de insuspeitada sacralidade, sem vela nem vento, sem motor nem remos, sem antes nem depois…

Padrão dos Descobrimentos
Padrão dos Descobrimentos

* Artigo publicado no Observador, em 03.10.2024.
** Professora aposentada da Universidade de Lisboa.