Lourenço Henrique Henriques-Mateus *
Se a memória não me atraiçoa, comecei a encontrar-me assiduamente com o general Baptista Pereira aí por volta de 2006 ou 2007, nas vésperas do XI Congresso Ibero-Americano de História Aeronáutica e Espacial, quando a Força Aérea Portuguesa tomou a seu cargo organizar entre nós este bem conhecido simpósio de historiadores aeronáuticos latino-americanos, o qual teve lugar em Lisboa (Alfragide), no auditório do Estado-Maior da FAP, entre 6 e 10 de Outubro de 2008 e que contou com a participação de congressistas designados pelos institutos de História Aeronáutica e Espacial de nove países: Argentina, Brasil, Chile, Espanha, México, Perú, Uruguai, Venezuela e Portugal.
Explicando-se a circunstância de tal organização ter acontecido entre nós nesse momento com o facto de em 2009 ocorrer, simultaneamente, o 3.º centenário da ascensão pública da máquina de andar pelo ar do padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão e o centenário do primeiro voo de um aeroplano em Portugal. Tendo então sido assinado por todos os chefes de delegação um manifesto de intensões intitulado ‟Declaração de Lisboa”, onde cada qual se propunha promover um salutar e profícuo intercambio entre as entidades pertencentes à FIDHAE (Federación Internacional De Entidades De Estudios Históricos Aeronáuticos Y Espaciales), no sentido de consolidar a importância que a História da Aviação representa no contexto dos países integrantes da Federação.
Por esses dias, eu já assinara muitos artigos sobre temas da história aeronáutica portuguesa nas páginas do Público, tanto de aviação como de aerostação, nomeadamente no suplemento de domingo daquele jornal. E somava mais de uma década de colaborações esporádicas com o Museu do Ar, cuja biblioteca comecei a frequentar, ainda em Alverca, no início da década de 1980, quando o coronel Tello Pacheco dirigia aquele Museu. Estas colaborações, que logo se tornaram cada vez mais frequentes, contaram depois disso com a estima e cumplicidade dos coronéis Albano Fernandes e Henrique Rodrigues, que o sucederam na direcção daquele museu.
Afortunadamente, para mim, um dos leitores assíduos das minhas crónicas domingueiras no jornal Público era o general Brochado de Miranda. E foi através do Museu do Ar que este vulto da Força Aérea me abordou para ser um dos conferencistas do importante congresso internacional que esta Instituição estava a preparar, atribuindo-me então a Força Aérea o papel de a representar com um tema de aerostação (o de Bartolomeu de Gusmão); pois o tema de aviação seria representado pelo então conservador do Museu do Ar Dr. Mário Mota Correia, investigador que por esses dias já era meu amigo e muito me orientou em vários temas da História da Aviação, sem de mim esperar outra recompensa que a de me ver praticar na imprensa escrita o Dever de Memória que hoje serve de lema àquele Museu.


Na sequência deste congresso os meus encontros com o general Baptista Pereira tornaram-se cada vez mais frequentes, tanto mais que este oficial general dirigia então a revista «Mais Alto». O mesmo acontecendo com o general Brochado de Miranda, que por esses dias andava empenhadíssimo na tarefa de dar corpo e expressão ao arquivo histórico da FAP, passando eu, por isso, a frequentar amiudadamente tanto aquele arquivo como redacção da revista.
E bem vistas as coisas, foi graças ao interesse destes dois generais pela preservação e divulgação do património histórico da aeronáutica portuguesa (não só do militar, mas, muito especialmente do civil) que começou a germinar então a ideia de se fazer, a partir da Instituição e com os seus limitados recursos para esta tarefa, qualquer coisa que divulgasse amplamente este nosso segmento histórico, onde a aviação e a aerostação teriam igual importância patrimonial como partes do todo que compõe a mal conhecida História da Aeronáutica Portuguesa. Coisa essa, que teria que extravasar o âmbito restrito do Arquivo Histórico e dos leitores da revista «Mais Alto»; ou seja, que deveria lançar-se para além da «gente da Casa» —como então um destes generais denominou todos aqueles que integram a Força Aérea— militares que, devido à cultura institucional ali existente, há muito que estavam bem servidos de conhecimentos históricos da aviação portuguesa com os riquíssimos artigos que a revista «Mais Alto» publica regularmente desde a sua fundação.
E é aqui que a lucidez do general Baptista Pereira identificou um possível rumo para concretizar esta ideia, que teria como propósito devolver à cidadania um património que lhe pertence. Este possível rumo ainda era, nesse momento, muito vago, mas passaria pela criação de um organismo permanente, uma entidade ou um instituto, onde se debatessem regularmente os temas aeronáuticos. Para isso, havia que encontrar soluções e superar obstáculos burocráticos e logísticos, era preciso juntar ainda um grupo de gente com conhecimentos e capaz de se empenhar no esforço de pôr esta ideia em prática por simples paixão —‟por amor à camisola” como se costuma dizer—, sem outra compensação que a de prestar tributo a quantos construíram e consolidaram os alicerces da nossa aeronáutica.


Mas, como em tudo na vida, uma coisa é pensar e a outra realizar. E foi por isso que o tempo se escoou ao longo dos anos seguintes, indiferente a sonhos e vontades. E um dia até, não sei já dizer quando, cheguei mesmo a acompanhar o general Baptista Pereira numa entrevista que teve com o professor Joaquim Veríssimo Serrão na Academia Portuguesa de História, então sediada no Largo da Rosa, mas desse simpático encontro nada se adiantou de concreto, pois milagres é o Céu que os faz e uma frigideira, por melhor que seja, só por si não faz um pastelão, há que lhe deitar ovos dentro… e assim sendo, tudo ficou como estava.
Contudo, e apesar de a ideia parecer irremediavelmente estagnada no lago das impossibilidades, a vontade de encontrar a via que lhe desse solução não esmorecera, porque volta e meia falava-se deste assunto. E tal como a água que brota de uma rocha busca o caminho, nem sempre fácil, para alcançar a plenitude do mar, também o general Baptista Pereira buscou soluções que lhe permitissem levar adiante o seu intento. Propósito que neste momento já não era só dele, pois, entretanto aglutinaram-se em seu redor ao seu alguns camaradas de outros tempos. E um dia telefonou-me, a marcar encontro na Sociedade Histórica da Independência de Portugal, radiante e convicto de ter encontrado nesta Sociedade o melhor organismo cultural para semear a sua almejada ideia, tão longamente maturada.
Lutador e tenaz, mas tão sereno como paciente, o general Baptista Pereira sabia bem que o melhor atributo de um chefe é saber formar um grupo coeso, que integre harmonicamente as diferentes aptidões de cada um por forma a levar por diante o contributo de todos. É foi a isto que se deveu o sucesso inicial do que viria mais tarde a ser o Instituto Bartolomeu de Gusmão da SHIP, instituto que deve o nome a uma sugestão então apresentada pelo tenente-coronel Brandão Ferreira.
Volvido algum tempo, realizou-se a primeira conferência do Instituto, que tinha como tema o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão. E a audiência presente nesse dia abarrotou o salão nobre do Palácio da Independência. Depois, outras a seguiram, mas o nosso horizonte era curto, com pouco mais de meia-dúzia de conferencistas agendados até ao final da temporada, ficando a pairar entre nós a dúvida do que aconteceria a seguir.
Entretanto, e já lá vão dez anos e cerca de uma centena de conferências proferidas, o Instituto singrou indiferente a maus ventos e marés contrárias, sobrevivendo à tragédia da pandemia e às demoradas obras de recuperação do Palácio da Independência. Sempre com o apoio da Presidência da SHIP — tanto do dr. Alarcão Troni como do dr. Ribeiro e Castro— com a colaboração generosa e empenhada do seu pessoal e adesão espontânea de alguns sócios dedicados a outras áreas do conhecimento. Por vezes, até, com a solidariedade e cumplicidade de outras instituições, como a Academia de Marinha, a Sociedade de Geografia, o Centro Nacional de Cultura e algumas mais.
Durante todo este tempo o general Baptista Pereira manteve-se na direcção do Instituto Bartolomeu de Gusmão, estendendo o seu mandato muito para além do que devia sem disso ter culpa e ultimamente até, um pouco, contra sua vontade, posto que já não se sentia capaz de cumprir as funções que lhe são inerentes, mas que mesmo assim satisfez, praticamente até às vésperas do seu desaparecimento, altura em que o engenheiro Luís Barbosa o sucedeu na presidência e a mim me foi atribuída a vice-presidência, cargo que fora desempenhado pelo ten.cor. pil-av. Brandão Ferreira desde a fundação do Instituto Bartolomeu de Gusmão.
Entretanto alguns dos signatários da constituição do Instituto já não estão entre nós, mas os restantes fundadores prosseguem a obra iniciada pelo general Baptista Pereira. E é graças ao trabalho do ten. Cor. Pil-av. João Brandão Ferreira, do coronel-engenheiro FAP Eduardo Brito Coelho, do engenheiro (ex-major FAP) Luís Barbosa e do major-general Avelar de Sousa que aqui estamos hoje, na SHIP, conjuntamente com os que entretanto se nos agregaram, a dar continuidade ao seu trabalho em prol da História da Aeronáutica Portuguesa e a tributar-lhe, com isso, a sua terna memória.


* Historiador Aeronáutico. Consultor da Direcção Histórico-Cultural da Força Aérea. Investigador Integrado do CITCEM da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.