Carlos Maria Pereira dos Santos
Longe e bem longe de mim estava a ideia, ainda há alguns dias, de me achar neste lugar, investido na honrosa, mas para mim difícil missão de pronunciar algumas palavras alusivas ao acto soleníssimo que aqui se realiza, para inaugurar o padrão comemorativo da batalha de Ourique.
Sem alarde de falsa modéstia, nem pelos dotes de erudição ou de palavra, nem pelas minhas inclinações literárias, nem sequer pela natureza do cargo oficial que desempenho, estava eu naturalmente acreditado para ser feliz arauto de tão singular feito de armas e, ainda menos, o do nosso esforço militar através da história, que hoje se exalta.
Quis, porém, S. Ex.ª o Sr. Sub-Secretário de Estado da Guerra, conferir-me a distinção de me nomear para o desempenho desta tão árdua tarefa. Como militar que não desobedece – nem deserta do seu posto de combate – que como tal considero o local em que me encontro – e ante, ainda, o dever de cortesia para com S. Ex.ª, que não admitia recusa nem sequer desculpa, aqui me encontro perante V. Exas. para proclamar os fastos da nossa actividade guerreira, e para encarecer o feito que se celebra, traduzindo na linguagem chã mas sincera do soldado, a significação para a nossa alma de portugueses, da cerimónia que está decorrendo.
Somente uma explicação se apresenta ao meu espírito, para justificação da escolha feita, e que particularmente me desvanece: Sua Ex.ª, Infante como eu, orgulhoso da Arma a que tão felizmente pertencemos ambos, ao nomear o Director da Arma de Infantaria para a missão que tão imerecidamente lhe confiou, quis por certo vincar bem, nesta festa militar das Comemorações Centenárias, o facto incontroverso de que a Infantaria portuguesa nasceu com a independência da Pátria e é, portanto, sua irmã gémea.
Perdoem V. Ex.ªs se comecei falando de mim. Era, porém, indispensável ao meu conforto moral nesta emergência, ganhar, rogando-o, o favor da vossa benevolência para a pobreza dos conceitos desta minha despretensiosa alocução, de homem que sempre foi de poucas falas.
Há 800 anos, andavam revoltos os tempos ao máximo, pela encarniçada luta que entre cristãos e infiéis se travava na nossa Península, para a sua reconquista, a bem da fé, às hostes mouras que, aí por 3 séculos antes, a haviam invadido às ordens de Tarik e Musa, dominando-a fulminantemente no curto prazo de dois anos.
Foi no meio desta formidável conflagração de povos, de raças e civilizações diferentes, que se iniciou, desenvolveu e consolidou, por um milagre de coragem, de valor, de indómita firmeza e de misticismo religioso, a independência de Portugal.
Contudo, sem querer fazer história – que para tal não é o ensejo – cometeria, no meu sentir, grave injustiça e ingratidão, se não recordasse ao menos, na hora que passa, a primeira tentativa histórica da nossa autonomia, levada a efeito pelo esforçado e audaz chefe lusitano, Viriato, precursor famoso das lutas que, 11 séculos mais tarde, tiveram como feliz desfecho a ambicionada independência da Pátria portuguesa.
Foi ele, de facto, quem, 150 anos antes da era de Cristo, levantou pendão contra o domínio de Roma e o manteve em chefe formal durante cerca de 10 anos.
Vilmente assassinado pela torpe traição de lugar-tenentes seus, como sabeis, tão vivo permaneceu, apesar disso, o espírito de independência dos lusitanos, que, embora a luta prosseguisse sob a direcção de chefes estrangeiros mas valorosos, só se apagou a sua resistência ao invasor largos anos mais tarde, esmagada pelo poderio imenso de fortes legiões romanas, chefiadas pelo próprio Júlio César.
Assim eram já, naquela época, os valorosos soldados da nossa terra, antepassados indómitos daqueles que, já estruturalmente portugueses, haviam de fazer empalidecer em tempos modernos a estrela, até então de vitória, do grande Napoleão Bonaparte!
Decorrem os séculos sobre os séculos, e com esse transcorrer dos tempos, a nossa Península sofre, sobre a invasão romana, sucessivamente as dos bárbaros e as dos árabes. No revolver das lutas furiosas a que ambas deram lugar, nenhum Estado cristão ou mouro logra cristalizar em forma estável e, pelo que respeita à actividade dos lusitanos, ela dilui-se, sem personalidade própria, na actividade geral dos povos peninsulares.
Somente aí pelo ano 715, um émulo de Viriato – Pelayo ou Pelágio – rodeado por um fraco núcleo de companheiros fiéis e decididos – logrou renovar, então com mais feliz êxito, as façanhas do chefe lusitano Viriato nas penedias dos Hermínios, mantendo livre nas alcantiladas, agrestes e inacessíveis serranias das Penhas da Europa, o minúsculo reino das Astúrias.


Fortes de próprio valor, da audácia dos seus preclaros chefes militares e do arrojo e espírito combativo dos seus vassalos; hábeis no aproveitamento das discórdias intestinas que breve estalaram entre os dominadores árabes; os godos das Astúrias, descendo do seu ninho de águias, iniciaram, através do tempo e do espaço, a série de acontecimentos militares e políticos que constituíram o que na história se ficou designando por: Reconquista.
Aludo a estes factos, porque a formação do Estado português é um episódio dessa formidável e vitoriosa reacção cristã, então desencadeada contra os sarracenos invasores.
Com o alargamento e feliz êxito da Reconquista, novos estados cristãos se foram formando, em constante afluxo e refluxo de fronteiras, mercê da sorte vária das batalhas travadas com o inimigo comum e das consequências políticas das dissidências que, a molde do que sucedera e sucedia entre os mouros, estalaram entre os chefes cristãos, quando não mesmo, entre eles e os seus próprios vassalos.
A insofrida cobiça e a ânsia de poderio de uns e a torva avidez, as cabalas e, não poucas vezes, a traição dos outros, mantinham em estado quase endémico estas lutas fratricidas, que só amainavam quando a intensidade da pressão inimiga obrigava à união contra o perigo comum.
A natureza, a importância e a frequência destes sucessos; o constante choque de interesses; a mistura por vezes inextrincável entre mouros e cristãos que não hesitavam em renegar as próprias crenças, quando os interesses particulares e a ânsia de domínio se sobrepunha ao seu fervor religioso, dão um caracter de marcada e complexa confusão à fisionomia geral, política e militar, da Península, ao despontar o período histórico em que se manifestam os primeiros sintomas da revivescência das aspirações autonomistas dos primitivos portugueses.
Foi, pois, neste quase caótico ambiente, que o futuro reino de Portugal se foi formando e desenvolvendo, lenta, mas seguramente, por uma série de manifestações de actividade militar, política e nacionalista, apenas comparáveis, na sua forma e evolução, aos fenómenos da natureza tectónica que, nos domínios da geologia, se desenrolam durante a constituição cósmica dos mundos novos, até à sua cristalização em formas definitivas.
Tais fenómenos, que nos outros Estados peninsulares se haviam caracterizado como elementos de desagregação e ruína, foram, pelo contrário, para o novo reino em formação, agentes de condensação e coesão progressivas.
É que uma força superior, poderosa, inteligente e decisiva, os orientava e canalizava em um sentido intensamente construtivo.
Essa força foi o talento militar e o tacto político daquele que, mais tarde, foi o primeiro rei de Portugal: D. Afonso Henriques, o Conquistador.
Herdara o jovem Conde de Portugal, essas qualidades, de seus pais: o talento militar, de D. Henrique de Borgonha; o sentido político de D. Teresa. – Dotes intrínsecos de alto valor que o distinguiam fundamentalmente dos seus progenitores, se conjugavam, porém, com esses predicados hereditários: o valor indomável e a audácia ilimitada, temperada por oportuna prudência, no campo militar; o bom senso, a recta visão e arguta previdência no campo político.
Como chefe militar, D. Afonso Henriques soube aproveitar-se da situação privilegiada em que se encontrava, para dar às operações contra os seus adversários, momentaneamente mais ameaçadores, a feição que na estratégia moderna se designa por manobras por linhas interiores: – assim conseguiu fazer frente a uns e outros, com os meios relativamente escassos de que então dispunha.
No campo político, – aproveitando oportunidades, ganhando adeptos, desagregando o inimigo pela intriga, – fazendo e desfazendo tratados em harmonia com a razão de Estado, isto é, fazendo o que hoje se chama diplomacia, logrou servir maravilhosamente os objectivos militares à custa dos quais ia, principalmente, construindo pedra por pedra, o edifício do novo reino.
A solidez da cimentação progressiva da independência portuguesa deve-se, porém, a um predicado especial – que nenhum dos seus mencionados ascendentes possuía, nem podia possuir: – o amor pátrio!
Como se sabe, D. Henrique de Borgonha era de origem francesa e D. Teresa oriunda de Castela; ambos, pois, estrangeiros em terra portuguesa. A sua actividade militar ou política era accionada, portanto, mais por ambição de poderio de que propriamente por sentimento de patriotismo – com D. Afonso Henriques as circunstâncias eram diferentes. Nado e criado em terra portuguesa, e educado, desde a mais tenra infância, em contacto com o sentir do povo e pelo bom português Egas Moniz que foi seu aio, o seu apego à terra que o havia visto nascer entrou em grande quantia, nas suas concepções político-militares e deu-lhe alma para as levar a bom termo.
D. Teresa, sua mãe, quis talvez ser simplesmente Rainha; D. Afonso Henriques quis ser mais alguma coisa: – Rei de Portugal! o que – no meu conceito – constitui duas modalidades de exercício de soberania totalmente distintas, sob o ponto de vista da sua influência na consolidação das liberdades portuguesas.
Pode-se dizer, portanto, que, na formação do novo reino, influíram tanto as elevadas qualidades militares e políticas de D. Afonso Henriques, como o seu profundo sentimento nacionalista, integrados todos estes factores na intensa fé religiosa que era característica dominante daqueles tempos de intensa luta contra os infiéis.
Seria interessante, – para bem enquadrar e localizar Ourique na evolução dos primeiros alvores da independência portuguesa, analisar – passo a passo – a actividade militar e política do seu fundador, desde que aos 15 anos de idade se armou cavaleiro – a si próprio – na catedral de Zamora, até que, nos campos de Ourique desbaratou as hostes do chefe mouro Esmar.
Levar-me-ia, porém, muito longe tal intento e não interessam fundamentalmente, tais acontecimentos, ao significado do acto a que estamos assistindo. Além disso, eu não quero abusar demasiado da generosa atenção com que se dignam escutar-me, repetindo factos por demais conhecidos, mesmo dos elementarmente versados em assuntos de história pátria.
Anda a jornada de Ourique, primeiro padrão formal do esforço militar português através da história, envolta no mistério e na lenda.
A escassez de documentos da época não permite determinar, com precisão suficiente, nem o local da batalha, nem os efectivos em presença, nem os pormenores da luta. Discutem ainda os eruditos todas estas circunstâncias, aduzindo cópia de argumentos contra ou a favor das teses propostas.
Discussão evidentemente interessante sob o ponto de vista particular da verdade histórica, mas de plano secundário para o fim que neste lugar nos congrega.
Deixai, pois, pairar a lenda sobre este belo feito de armas e poetizá-lo com as suas ingénuas invenções ou exageros! A poesia e a lenda são mais acessíveis à alma simples e crente do Povo e melhor nela gravam a significação simbólica dos factos. A própria e igualmente discutida aparição, ao chefe português, de Cristo crucificado, verdadeira ou não, materializa, com o seu cândido sabor místico, o fervor religioso que foi, indiscutivelmente, um dos factores da vitória alcançada.
Pouco importa agora, portanto, que a peleja fosse travada, nestes campos ou algures; que a grandeza dos efectivos em presença a distinga como batalha formal ou simples fossado, que a proporção entre os combatentes mouros e cristãos fosse de 1 para 100 ou qualquer outra; ou que, finalmente, os chefes mouros fossem vários ou um apenas. O positivo, o que tem verdadeiro sentido neste momento é que, como diz Cristóvam Ayres, «Afonso Henriques venceu com uma pequena hoste, um poder maior de sarracenos sob o comando de Esmar em um sítio chamado Ourique». E é incontroverso, também, que foi depois dessa vitória que, pela primeira vez, se adereçou com o título de Rei.
Ourique, milagre de valor militar exaltado pela fé, deve para nós ser mais do que um facto material; pelas circunstâncias que o rodeiam e adornam, eleva-se à categoria de símbolo formosíssimo das virtudes militares da nossa raça nascente, que este padrão materializa com as suas linhas sóbrias e harmónicas, em terra portuguesa tantas vezes regada pelo sangue generoso e nobre dos nossos soldados.
Assinala aqui, como se estivesse algures, não um episódio isolado, mas o alvorecer de Portugal como terra livre e, como seu primeiro marco miliário, o despontar do esplendor das glórias militares em que a nossa história é pródiga.
Esse deve ser o seu verdadeiro significado e isso basta para que o gravemos nos nossos corações de portugueses, como imagem sagrada, das muitas que, mais ou menos, fastosas e rendilhadas em arquitectura, assinalam por terras de Portugal e do seu Império o esplendor da nossa história militar e marítima.
Este, como os outros, atestará através de todos os tempos, à geração presente e às vindouras que, como muito bem disse em Guimarães S. Ex.ª o Sr. Presidente do Conselho e Ministro da Guerra: «A Pátria portuguesa não foi feita de ajustes políticos, criação artificial no tempo pela acção de interesses rivais. Foi feita na dureza das batalhas, na febre esgotante das descobertas e conquistas, com a força do braço e do génio».


Como tal, meus senhores, a nossa Pátria é e será imperecível.
Na manhã do dia que se sucedeu à jornada de Ourique, Portugal existia já! Esse sol que há tantos milhares de anos aquece e fecunda terras, agora já portuguesas, ao erguer-se mais uma vez no horizonte e ao beijar com os seus raios nascentes a bem-dita terra ganha com tamanho esforço e galhardia, para a nova grei, deveria ter como que anunciado a toda a cristandade, por seu maior esplendor e brilho, a aurora de Portugal, tão radiosa como a sua.
Pelo menos, aos portugueses de então, assim deve ter parecido!
Contudo o esforço que havia de firmar a nossa grandeza em alicerces inabaláveis, não havia senão começado. Tarefa imensa, de labor quase sobre-humano, ia desenrolar-se através da história, desde a jornada heroica de Ourique até aos nossos dias.
Nela, meus senhores, a milícia e os marinheiros de Portugal iam ter um papel de destaque.
A evolução do nosso esforço guerreiro levaria muito tempo a contar, mesmo em breve síntese, tão dilatado foi, no tempo e no espaço, o nosso trabalhar, e tão numerosas são as afamadas proezas que o ilustram.
No tempo, dura há oito séculos; no espaço, alargou-se ao Mundo inteiro; nas proezas, é de tamanha grandiosidade e de tão intenso fulgor que, ao celebrá-las, diz o épico cantor dos nossos feitos:
«Que excedem as sonhadas, fabulosas.
«Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro
«E Orlando, ainda que fosse verdadeiro
Mas, como esta solenidade das Comemorações Centenárias é particularmente destinada a exaltar o valor do soldado português, ficaria incompleta a minha alocução, se desse esforço nada mais dissesse, depois de definir Ourique, ainda que seja para lhe marcar, apenas, as mais salientes das suas pedras angulares.
Para ser, porém, breve, tomarei por guia o significado das bandeiras que, arvoradas no alto destes mastros, como outrora e no presente, nas pontas de lanças e topes de baixeis, tremulam triunfalmente ao vento, atestando como egrégios símbolos das nossas grandezas, as épocas heroicas da nossa história.
Vencidas as hostes sarracenas em Ourique, D. Afonso Henriques não se deixa adormecer sobre os louros colhidos. A sua acção militar prossegue com denodo e, depois de Arcos de Valdevez e Trancoso, logra ver definitivamente reconhecida a autonomia portuguesa, pela paz de Zamora, em 1143.
Com o decorrer da primeira dinastia, de que foi o fundador, prossegue ininterrupto o esforço militar português, manifestado sob o duplo aspecto da consolidação da independência adquirida e da ampliação territorial da monarquia nascente.
Reorganizadas as nossas forças militares em moldes novas, a luta prossegue. E, umas vezes sós, outras de parceria com auxiliares estranhos, o infiel adversário comum ou os irmãos de crença connosco desavindos vão sendo dominados por teimosa acção de guerra, entremeada de êxitos e revezes.
O mouro vai recuando! Santarém, Lisboa, e Alcácer, primeiro, o Alentejo, depois, e o Algarve mais tarde, caem em nosso poder, e, breve, as fronteiras de Portugal pelo Sul atingem também o Oceano. Para dar solidez a estas vitórias ganhas em território nosso, a cooperação de forças portuguesas nos exércitos cristãos da Reconquista, ajuda a esmagar o adversário comum, nos campos de Navas de Tolosa e Salado.
Quase dois séculos de lutas, é o preço dessa consolidação política e ampliação territorial. Um punhado de portugueses, combatendo, sem tréguas, adversários que o assediam por todos os lados, logrou, enfim, realizar o doirado sonho dos seus antepassados.
Não foi, porém, duradoira a pausa feita no batalhar dos portugueses, depois de atingido o seu primeiro objectivo. As consequências políticas da morte de D. Fernando I iam pôr de novo em causa a liberdade adquirida à custa de tanto esforço.
De facto, em 1384, vieram de novo às mãos os reinos cristãos, desavindos por dissensões políticas; mas a decisão do Mestre de Aviz e o talento militar de D. Nuno Alvares Pereira salvam, uma vez mais, a independência da nossa Terra em Atoleiros e Aljubarrota.
De vitória em vitória, a autonomia de Portugal é novamente argamassada com o sangue derramado e a valentia prodigalizada pelos seus soldados, durante um quarto de século mais.
Ergue-se, altaneira, no tope do quarto mastro, a bandeira esquartelada pela Cruz de Cristo, proclamando aos quatro ventos, de mãos dadas com a de D. Manuel, a formosíssima epopeia dos descobrimentos e conquistas de Além-Mar, maravilhosa e épica corrida dos heroicos soldados e marinheiros portugueses, através do mundo inteiro.
Três ordens de feitos notáveis ilustram, durante 163 anos, o período de fabulosas façanhas que decorre desde a conquista de Ceuta até Alcácer-Quibir: a conquista de Marrocos, os descobrimentos, e as formidáveis e épicas lutas que acompanharam a formação elo nosso Grande Império da Índia.
Ceuta, Tanger, Arzila, Azamor, nas conquistas em Marrocos; as primeiras proezas dos nossos navegadores impulsionados por Sagres, a passagem do Cabo das Tormentas, a abertura da rota da Índia e a revelação das Terras de Santa Cruz nos descobrimentos; Cananor, Cochim, Ormuz, Diu, Goa, Malaca e Ceilão, nas conquistas do Oriente: são desses feitos pedras angulares daquelas cuja definição me propus fazer.
A estes episódios famosos, se ligam os nomes imortais dos Infantes D. Duarte e D. Henrique e os de esforçados Capitães, como: D. Duarte de Menezes, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Pedro Alvares Cabral, Afonso de Albuquerque, D. Francisco de Almeida e D. João de Castro: e proclamo só estes, porque todos não posso mencionar aqui!
Tão grandiosa é esta epopeia de lutas com os homens e os elementos, que, para ser possível, como o foi, era necessário que cada português valesse por cem. E assim era de facto!
Em Cochim, por exemplo 144 portugueses apenas, assistidos somente de escassos auxiliares, desbarataram os 50.000 naires do pérfido Samorim!!
Há que fazer aqui um interregno, para saudar, a propósito das façanhas antes contadas, a Grande Nação Brasileira que, por intermédio da sua Embaixada Extraordinária, quis associar-se à consagração de glórias que são também suas, porque irmãos somos de sangue e raça.
Com o desaparecimento de D. Sebastião, inicia-se um sombrio período de provações para Portugal; são trevas de meio século, na nossa história. Mas a alma portuguesa não tinha morrido! E logo em 1640 – precisamente há 3 séculos – desperta em desabrochar magnífico, para, em 27 anos de guerra, nos dar de novo independência, com Montijo, Linhas de Elvas, Ameixial, Castelo Rodrigo e Montes Claros. Portugal, qual nova Foenix, ressurgia das próprias cinzas.


Entramos, depois destes sucessos, em uma fase de relativa calma, em que apenas se recorta a alta figura do Marquês das Minas, para, entre 1807 e 1811, na famosa Guerra Peninsular travada contra os veteranos do grande chefe militar que foi Napoleão Bonaparte, assistirmos dentro de Portugal e com o forte auxílio dos nossos seculares aliados, já outrora prestado na conquista de Lisboa, às acções de Vimieiro, Redinha, Foz de Arouce e, acima delas todas, à do Bussaco, que são pontos culminantes dos vários feitos de armas, de que os invasores longínquos saíram escarmentados, e não mais voltaram! É que, os grãos de areia que durante o reconhecimento de 16 de Outubro de 1810 salpicaram Massena, em frente das linhas de Torres Vedras, haviam ferido de morte, lenta, mas segura; as águias imperiais, a que a quase Europa inteira se havia submetido.
Não deveria Napoleão ter-se surpreendido, porém, do seu fracasso! Pela amostra dos 9.000 portugueses que Junot lhe enviara, formando a famosa Legião sob o comando do Marquês de Alorna, poderia bem ter visto, em Saragoça, Wagram e Smolensko de que têmpera eram estes adversários seus, da extrema Europa Ocidental!
Corramos um véu discreto sobre a actividade militar das lutas políticas internas que vão de 1820 a 1852, não porque nelas faltem acções de relevo e brilho, mas simplesmente porque não é necessário ir buscar, às lutas entre irmãos, argumentos para exaltar, nem a reputação do soldado português nem a grandeza do nosso esforço militar.
Abordamos as últimas fases da nossa já larga epopeia militar: as campanhas de ocupação colonial e da nossa comparticipação na Grande Guerra. São factos dos nossos dias.
As campanhas de Africa, – feitas de episódios muito deles ignorados de nós próprios, – constituem, no conjunto, uma das mais belas páginas da nossa história militar. Que rosário de sofrimentos, sacrifícios e dedicações elas encerram, e que inigualáveis actos de estoica ou audaz bravura e acrisolado patriotismo as esmaltam!
Marracuene, Coolela, Chaimite, Gaza, Baroé, Bailundo, Cuamato, Dembos, Guiné, Cuanhama e M’Kula, com Caldas Xavier, Galhardo, Mouzinho de Albuquerque, Aires de Ornelas, Paiva Couceiro, Azevedo Coutinho, Massano de Amorim, Roçadas, João de Almeida, Teixeira Pinto, Pereira de Eça e tantos outros companheiros de armas seus, são das melhores pérolas finas que se engastam na nossa refulgente coroa de glórias militares.


Na Grande Guerra, a nossa acção nos campos brumosos da Flandres, em cavalheiroso cumprimento de obrigações daquela mesma velha aliança já cimentada pelo sangue vertido na Guerra Peninsular, não desmerece, pelo seu valor, das nossas imperecíveis tradições. La Lys tem, nestes fastos, lugar merecido.
Chego, meus Senhores, ao termo da missão que aqui me trouxe.
Faltaria, porém, a inesquecível dever e sincero sentir se, antes de proferir as palavras finais de exortação ao brio, à coragem ao valor e ao patriotismo do soldado português, que tão defeituosamente tentei esboçar, eu não oferecesse o preito da minha muito admiração e respeito, às grandes virtudes cívicas e militares do mais preclaro de todos os soldados de hoje: Sua Ex.ª o Sr. Presidente da República, Chefe Venerando do Estado Português.
Soldados de Portugal!
Ao soltar este brado, eu dirijo-me a todos vós que me escutais porque, se lá fora foi necessária a concepção da Guerra total para fazer soldados todos os cidadãos, aqui, em Portugal, a Guerra foi perpetuamente total, pois ao arrancar do inimigo sempre se opuseram, durante os séculos de história que recordei, os peitos de todos os portugueses dignos desse nome, sem distinção de condição, mester ou credo.
Soldados de Portugal! Sentido!
Levantai, orgulhosos, a vossa cabeça de gigantes, que o sois da história, e rectificai ante o altar sacrossanto da Pátria, personificado, aqui, pelo singelo Padrão de Ourique, o juramento solene que fizestes de a defender até à última gota do vosso sangue, com as armas enquanto as puderdes empunhar; com as unhas e com os dentes, se elas das mãos vos caírem, renovando, se preciso for, de ponta a ponta do Império Português, as trágicas epopeias de Sagunto e Numância.
* Alocução proferida pelo GEN Carlos Maria Pereira dos Santos, no acto da inauguração do Padrão de Ourique, em Castro Verde (1940).