Meu nome é Afonso Henriques *

Afonso o conquistador Afonso o conquistador
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Maria Helena Ventura **

I – A primeira rebeldia


Estou prisoneiro do Tempo e das memórias, sofrendo de uma inquietação eterna. Dos fundos declives não chega a sonoridade, nem o perfume dos valados se entranha pelas narinas. A minha prisão é este mundo inviolável e conchegado, onde a poeira dos caminhos e os gritos de guerra não entram. Tudo silencioso de mais para a minha impaciência.
Às vezes abrem-se frestas mais amplas nos reposteiros das nuvens e capto imagens distantes coadas pelo sol da tarde. Glebas de trigo e centeio, vinhas vestidas de verdes, o frémito do vento nas ramagens densas. Que saudades…Chamo, sem ouvir a minha voz, por um guardião supremo que existia, quando apalpava a textura do meu corpo. Crente num poder mais alto, era ele que rogava protecção na hora de combater nas algaras e fossados. Não me atende voz nenhuma…será que nunca existiu? Em vez dela só a rasteira presença do meu criado mudéjar, como o génio da lâmpada de Aladino. Teria sido enterrado comigo…teremos ambos renascido em moléculas diferentes, mas inseparáveis. Ele mais poderoso, mais letrado. Como tanto me dizia Frei Raimundo e Paio Mendes de repetir, no reino do Além haveria compensação: os maiores tomariam o lugar dos pequenos, os pequenos ver-se-iam engrandecidos…
Quantas discussões tive com Paio por causa dessas ideias. De que acertos falaria? Nunca quis quinhão alheio. Se alguma vez fui avaro, fi-lo pelo bem de alguns nobres que sempre me acompanharam e pelo povo, fundamento do meu reino. À minha mesa comiam os servidores e à mesa deles poderia eu comer sem achar grande diferença. Fui criado com rigor. Pouco mais tinha do que tenho agora, que nada me sobra além do pó das ossadas. Uma enxerga, um escabelo, umas moedas de ouro nas arcas das catedrais, não faziam de mim um dos maiores. Das eirádegas e fogaças entregues a Egas pelos servos, só me calhava o mesmo que a meus irmãos adoptivos. E cada um usava esse pouco como melhor entendia. Eu só queria a ração diária de alimento, o porte de um bom corcel, uma espada leve e afiada como rafieira. Agora nem a sombra me acompanha, nem desejo de amar, nem vontade de conquista.
Parece que a vibração do meu grito abanou as paredes invisíveis do corpo do mudéjar. Pressentindo esta necessidade de respirar um ar menos rarefeito a extravasar dos poros que não tenho, afasta o branco cortinado de gaze e acena com a cabeça, como se o tempo lá fora estivesse de feição. Sinto o ar fresco, uma corrente de ventos a esgaçar a malha de gotículas brancas sob o cetim azulado. Não me digam que aquelas ondas de lezírias e planuras, o esboço destes montes descontínuos onde brilham as alcáçovas, ainda são Portugal…Mas que andou esta gente a conquistar, se pouco mais tem do que deixámos eu e os meus herdeiros? Além vejo a fronteira dos espaços dominador por meu avô Afonso VI de Leão e Castela. Varão de muitas senhores, um dia foi ao Bierzo buscar a minha avó Jimena…
A rala cabeleira da paisagem semelha-se a uma cabeça atada por pálidas ligaduras, estradas, pontes, caminhos sem ninguém. Em vez de garranos ou malas, descansam barcos de grande porte em águas vivas, esperam lagartas de cores sobre carris adormecidas. E agora que anoitece, casas iluminadas como catedrais em dias de festa, gentes ausentes de si mesmas e dos que estão presentes, com aquele nico de metal na orelha para falarem à distância e ao perto. Sussurra-me o criado, ou o senhor, não sei, que se chama telemóvel, usado pelos moradores de uma casa, do mais pequeno ao mais velho, a pedirem vianda do quarto para a cozinha…
Nem vivalma nas almargens da terra de regadio, nem donzelas nos vergéis de alguma honra paçã, só gado a pastar nos campos sem servos para o conduzir. Diz ele que o progresso é isso, máquinas estranhas a fazerem o esforço humano. Sei lá se é bom. Os braços desses varões devem ter definhado como asas de galos depenados. Nem poderiam levantar uma espada, se o inimigo arremetesse à traição. Que não, diz o mudéjar…que agora as guerras maiores são rosários de palavras que ninguém entende e que os golpes mais contundentes são disparados por balas ou mísseis de longo alcance. Homens e mulheres nas frentes de batalha. E que um varão se adorna com linhos de Castro de Avelãs…e que as donas se vestem como varões, em vez de luzirem sedas. Já não pode haver o encanto de outros tempos, o impulso de um homem arreitado a levantar as fraldas às donas mais velidas nos vergéis, em noite de lua cheia.
Tudo parado, diz ele, por um cisco mais pequeno que cagadela de mosca belzebu. Sem vida fora do corpo humano, entranha-se na goela, agarra-se como lapa no rochedo. E tão fatal se revela que operou uma reviravolta nos destinos do mundo, fazendo a  vida tornar ao princípio dos tempos…Não pode causar dano superior ao dos golpes que retalhavam o corpo dos bravos, quando defendiam o chão. Mas se, por via de um animal mais pequeno que carraça, estiverem enjaulados como feras a viver de um sustento garantido, meditem nas heranças acumuladas que lhes trouxeram benefícios. Todas custaram vidas. E os vivos do meu tempo saíam para os campos, ao sol e à chuva, para esgadanhar a sobrevivência, sem medo de virulências.

Não há mensagens de tambor, nem vozes assobiadas, tão-pouco sinais de fumo. O que importa está condensado num código de memórias lidas à ordem do acaso, ou quando a vontade demanda. O silêncio que dantes purificava, é agora um punhal de gelo afiado sobre a nuca. E só não fere de morte porque em vez de encontrar matéria, é anulado pelo poder das ondas de uma estranha telepatia. Também não chegam aqui as vozes contraditórias dos que vêm falando de mim, só cá chegam fragmentos dessas discussões acesas pela chama de gerações. Afinal são nove séculos, muito têm para dizer. No meu tempo não havia paciência para cerzir mil versões de um só acontecimento. Tinham que acreditar na voz do rei e dos seus principais. Agora muita gente de saber, cada vez mais sobre um assunto só, vai dissertando com argumentos próprios, vasculhados os documentos exarados pelos antigos e por outros que lhes foram sucedendo. Cada vez mais exemplares, depois da invenção de uma prensa mecânica.
Historiadores, lhes chamam, diligentes pesquisadores a folhearem o Tempo em pergaminhos antigos. Esquecem-se que tudo pode ser falácia, vontade real de confundir, erro de maus copistas, desejo de exaltação de feitos e pessoas nos contextos defendidos. Confusão…uma babel de escrituras. Até as datas dos textos produzidos pelas chancelarias reais, a razão da origem de outros particulares, o aparecimento no mesmo dia sobre factos passados a milhas de distância, me tiraria o sossego. Mas nada parece demovê-los…logo lhes acrescentam a cor da ficção para fabricar enredos que vistam tão bem o corpo da retórica, como a loriga rematava as vestes de um guerreiro.
Sobre o meu nascimento falam de anos e locais diferentes para arrumar o assunto num plano ajustado aos argumentos. E até eu, sem vontade de gargalhar no constrangimento da minha eterna mudez, sinto os beiços agitados com a risada inaudível, quando palavras e argumentos não condizem com os factos. Já me puseram a nascer em tantos lugares diferentes, que só posso convencer-me de uma coisa: enamorados do meu valor e bravura, foram criando outros varões de nome Afonso à minha semelhança, para ajustarem o perfil aos argumentos forjados em cada geração.
Não vou dar pistas, todas acabam por desembocar nas balouçantes certezas muito ou pouco infundadas. Quando? Leiam a Colecção Diplomática do Mosteiro de Sahagún, a Crónica Anónima escrita por monge coevo de meu avô, o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, sigam o itinerário de viagens de meus pais, as suas assinaturas em documentos privados e da chancelaria real, percorrendo a lista de confirmantes. E vejam como, depois do casamento em 1096, cumpriram uma agenda que os retinha em Leão, peregrinando pelas Terras de Campos, ou em cerimónias litúrgicas nos lugares de culto desde o mosteiro de San Zoilo, em Carrion de los Condes. Onde nasci? Podia dizer-lhes que não sei da terra que me acolheu, pois se vinha de olhos fechados e cedo me transferiram para o colo de uma dona em cima de uma mula branca…Mas gosto de confrontos, mesmo que apenas verbais…Que se digladiem pela descoberta do local. Que importa que esse detalhe se lhes deixei um território povoado e livre de inimigos? Não estão contentes? Querem que desembainhe a espada e os ponha a todos na ordem? A sorte deles é não haver espadas nem alfagemes neste retiro distante. Nem sei porque vim cá parar, se a minha ânsia sempre foi de movimento entre gente desordeira, para continuar a limpar. Parece que mereci o Céu, como augurava a minha amada filha Teresa, e esse merecimento trouxe-me a vida de eterno tédio que tenho de suportar.
Falavam muito de um pacto sucessório celebrado entre Raimundo de Borgonha e meu pai, ora datando-o de tempos em que nenhum ainda tinha atravessado os Pirenéus…ora em anos posteriores com enquadramento retórico, mas ainda carente de motivação lógica. Sempre com argumentos que tanto serviam Deus como o Diabo. O texto do célebre pacto, de que nem há exemplar original, não cumpre os parâmetros dos modelos da época. Poderia ter aparecido em várias versões forjadas tardiamente. A ser feito à revelia do meu avô Afonso VI, sob vigilância de um legado de Hugo de Cluny, levantaria outras questões. Como podia o abade, tão chegado ao imperador, apoiar um pacto contra a sua autoridade? Era tio de Constance, segunda mulher do rei. Que a gente do abade tenha intervindo nos arranjos de casamento entre donzelas francesas com nobres da Ibéria, aceita-se. O abade queria alargar a influência de Cluny… prova disso é a imponência do mosteiro de Sahagún, pegado ao paço real: o maior de toda a Península. De resto não havia por que ferir uma amizade antiga para atender às ambições de genros, ou futuros genros.
Meu pai e Raimundo não eram primos, como tantos têm escrito: eram aparentados. Sibila, irmã de Raimundo, era casada com Eudes I de Borgonha, meu tio, irmão de meu pai e primo de Constance. Cunhados, companheiros de aventuras, ele viria a casar com a minha tia Urraca, feita legítima herdeira do trono de Leão e Castela na véspera de meu avô morrer, em Toledo. Bem sei que a minha mãe e minha tia sempre foram ambiciosas. Intrigavam-se, exigiam. O pobre do imperador, que tomara seis donas de quem só tivera filhas até aparecer um varão, tinha razões para se enojar de tanta fêmea. Mas não, diziam os conselheiros …Sendo o maior guerreiro da Ibéria, desfazia-se em mesuras para lhes atender os caprichos. E nesse querer de pai já em idade madura, minha mãe tomaria a dianteira como filha dilecta, por ser velida, por lhe ter herdado argúcia, inteligência e firmeza. Leiam um investigador independente chamado Abel Estefânio, pela paciente análise e interpretação dos documentos e por ser avesso a afirmações espúrias.
Um dia Afonso VI tomava por concubina a moura Zaida, nora do rei, ou irmã, como outros afiançavam, al-Mutamid de Sevilha. E tudo mudava quando ela lhe dava Sancho Alfónsez, em 1093. Aí tendes razões plausíveis para a ideia de um pacto, que não garantem a sua celebração. Três anos depois casavam-se meus pais, ele já com trinta anos, ela apenas com 14, depois da união de Raimundo com Urraca. As concessões feitas a Raimundo enchiam de inveja o meu pai? Mais me parece instigação das mulheres…Urraca ditaria as regras, por se achar com os direitos de filha mais velha legítima…Minha mãe disputaria esse lugar. Duplamente ambiciosa, sentia que a mãe fora outra esposa do rei, e ela filha do mesmo pai extremoso, pouco lhe importando um detalhe de nascimento. Em 1105 vinha ao mundo meu primo Afonso Raimundes, com uma irmã mais velha que não atrapalhava os seus direitos. Se Urraca fosse declarada legítima herdeira, Raimundo governaria em seu nome, enquanto o filho de ambos não pudesse herdar nos domínios do grande Afonso VI de Leão e Castela. Mas Sancho Alfónsez crescia, começava a confirmar os documentos reais em que aparecia, também, a assinatura de meus pais.
Não creio em contestação declarada com meu avô imperador, mas poderia Raimundo ter querido o entendimento com meu pai, para derrotarem a primeira escolha do velho? Meu nobre avô via-se na necessidade de anular o casamento com a quinta esposa, Elizabeth, e decidia casar em 1106, já com 69 anos, com a bela moura Zaida, tornada cristã com o nome de Isabel. Era uma forma de legitimar a sucessão do único filho varão e de calar ambições ou ânimos exaltados. Mas ouviria muitas vezes minha mãe dizer que a contestação, maior do que a oposição ou desagrado dos genros, partia dos conselheiros. Permanece então a questão colocada de forma recorrente: qual o motivo concreto para a celebração de um pacto sucessório, com ou sem, a suposta supervisão da gente de Cluny? Leiam Rui de Azevedo, J. P. Ribeiro, Bernard Reilly, porque também esse e outros de fora quiseram meter o bedelho. A história está cheia de ficções. Sem elas a vida não teria colorido, mas quem estão guerreava, não tinha tempo para efabulações.

Acreditava-se na força da vida e da morte. Por uma alcançávamos as glórias que a justificam viver, pela outra a resolução dos males decorrentes do desentendimento. Se as ambições de Raimundo estavam por detrás de um pacto, morreriam com ele em 20 de Setembro de 1107, quatro meses depois de ter sido declarado herdeiro de meu avô o jovem Sancho Alfónsez, filho de Zaida. A rainha Elizabeth tinha morrido de um parto difícil, no dia 12. Meu avô voltava a casar no princípio de 1108. E a 29 de Maio morria o jovem herdeiro, com menos de quinze anos, na batalha de Uclés, na tentativa dos almorávidas para retomarem Toledo. Em Dezembro, no Concílio de Leão, os principais da corte de um imperador Afonso VI desolado, declaravam minha tia Urraca senhora da Galiza, se não voltasse a casar.
Mais uma achega para completar a tessitura da História tantas vezes dissecada: no último casamento de meu avô, meus pais estavam presentes. E de lá mesmo davam foro ao povo de Tentúgal e carta de doação a uma terra em Arouca. Não havia tempo para saírem de Leão onde, no mesmo dia e exarados os documentos respeitantes ao condado portucalense, tinham sido confirmantes de um acto em Sahagún. Em Setembro de 1108 ainda estavam na corte do imperador. Só em Maio de 1109 se afastavam, inimizados com ele, saindo de Leão no dia 22, em viagem para o condado. Nada há que indique provas do meu nascimento antes disso.
Meu avô não abandonava Toledo, centro operacional da sua corte, depois de demandar os esforços desesperados do povo leonês para defender a cidade. Estava cansado de lutas com os inimigos, de intrigas familiares, desolado com a morte do único varão. E ainda doente, preocupado com a sucessão do Império. Talvez já tivesse demontrado a intenção de declarar Urraca como herdeira…talvez o facto enfurecesse minha mãe. E em 1 de Julho de 1109, com apenas 72 anos, acabava-se-lhe a vida, um mês depois de ter reconhecido Urraca como legítima sucessora. Mas conhecedor das fraquezas suas, e da fortaleza dos perigos que rondavam, escolhia para ela um segundo esposo, solteiro, guerreiro de grandes brios: Afonso de Aragão, o Batalhador. No dia 9 minha tia acompanhava o corpo do pai até Sahagún, sua última morada, e minha mãe ficava nas terras do condado portucalense. Talvez a poucos dias de parir-me, quem sabe? Depois Urraca casaria no fim do ano com Afonso de Aragão, formando com ele uma relação tumultuosa de proximidade e afastamentos, que meus pais ajudariam a fomentar à medida dos interesses.
Tanta ambição de poder para quê, se a 24 de Abril de 1112 – outros dirão 12 de Maio – morria meu pai em Astorga, terra sua, ferido por profundos golpes numa das batalhas que o opunham a minha tia Urraca e a seu novo marido? Muito tempo acamado mandava dizer a Egas que queria ver o seu varão antes de se finar. E a meses de eu fazer três anos, Egas pegava em mim e levava-me numa viagem estafante para ele, esplendorosa para a minha pouca idade, para uma despedida comovente. Henrique da Borgonha, nascido em Dijon em 1066, uma das datas discutidas pelos tais historiadores, acabava-se ali com pouca glória, ele e a sua ambição. Ficava a de minha mãe, que bondava e excedia a da família toda.
Das primeiras aventuras de infância lembro bem, nas residências paçãs de Britiande e Cresconhe, onde Egas Moniz, meu preceptor e pai adoptivo, me vigiava o treino com as armas de guerra e outras matérias que estimulavam o intelecto dum futuro governante. Pouco conheci Henrique. Levei a vida toda a decorar-lhe as feições pelo que Egas me contava. Para que nunca esqueças as raízes…Os meus filhos eram meus irmãos, a segunda mulher a minha mãe de afecto. O que possam acrescentar ao essencial da vida, não tem relevância nenhuma. Continuei meus treinos militares, a minha educação de varão destinado a governar, nas terras de Egas Moniz em Britiande e Lamego. Teresa Afonso contava-me histórias da minha avó materna Jimena Muñoz, e dos domínios do pai em Celanova. Uma concubina, bem sei, para atinarmos que, nas famílias, todos temos grande e pequeno.
Dizem os tais entendidos, que pouco convivemos, eu e minha mãe Teresa de Leão, mas é bom saberem que cedo Egas me levava ao paço de Guimarães para confirmar documentos da sua chancelaria, desde os onze anos. E ali acabaria por ficar, exigindo que meu nome superasse o de Fernão Peres. Ele, ou a maldita ligação aos condes galegos de Trava, era a pedra no sapato que roía a toda a hora. Minha mãe, que começara a intitular-se rainha, justificava precisar do clã Transtamara para fortalecer a posição na Galiza, aproveitando desaires de minha tia com o arcebispo de Santiago de Compostela, Diogo Gelmires e Pedro Froilaz, chefe dos Trava…Os senhores de Riba Douro sabiam das ambições dessa família e seus apoios àquelas terras e às do condado portucalense. Pedro fora um lacaio de Raimundo, educara o filho dele, meu primo Afonso, para herdar o Império com o prestígio de nosso avô. Não deixariam que minha mãe e o filho lhe acedessem. Egas tomara conta de mim. Se lhe desgostava a ligação aos condes de Trava por ver ameaçada a minha subida à liderança do condado, eu tinha que desgostar.
Tudo piorava quando minha irmã Urraca Henriques era dada como esposa a Bermudo Peres, que já tinha andado envolvido com minha mãe…Tinha eu à volta de doze anos. Estava habituado a tais arranjos, mas aquela promiscuidade não me deixava dormir. Essa era a semente da revolta, uma vontade irresistível de ser independente, de largar o meu condado. De vez em quando cavalgava até longe, tão longe como Zamora ou Astorga, no meu tempo senhorios de minha mãe, a última desde o cerco de Penafiel. Gostava dos espaços…Um dia entrava na igreja de San Salvador do mosteiro beneditino de Vidriales, em Zamora, e quedava-me por ali. Fixava o altar…imaginava o futuro. Só prestaria vassalagem a um Senhor!
Partilhava com Egas as minhas aspirações, a ideia que me assaltara, com uma vontade inabalável que não lhe escapava. Armar-te cavaleiro? Fá-lo sozinho, com a independência de um príncipe. Não tens pai vivo, não há varão à tua altura no condado. Nem queiras outros de fora…aceitá-lo seria jurares vassalagem. Minha mãe vinha a saber, prometia ficar a meu lado Daqui a um tempo, quando fizeres catorze anos. Egas tornava com os seus argumentos sábios. Que essa era a idade usada para os escudeiros, mas se eu não seria cavaleiro algum…Que o mais certo seria aminha mãe escolher alguém dos conde de Trava para me cingir. Minha tia continuava prisioneira dos golpes que lhe lançavam o bispo de Compostela, as famílias poderosas da Galiza, quando não as lançava ela ao ex-esposo Afonso de Aragão. Mas nada de essencial lhe escapava. Mal vinha a saber das minhas pretensões, rondava…Estava então o meu primo em vias de tomar as rédeas do poder. Se me rebelasse contra Teresa, mandava ela dizer, desejosa de vingança por tanta intriga ter sofrido da irmã, prometia uma cabeça nobre para me armar cavaleiro e ajudaria a minha mãe nos preparativos da cerimónia, em Zamora, se tanto me inspirara aquele espaço.
Na véspera de fazer catorze anos a cabeça latejava. Isolado num esconderijo da mata, numa madrugada brumosa, percebia como as informações dos espias corriam depressa do condado portucalense para a Galiza e dali até ao paço de Urraca. Tão cordiais os modos, tão generosas as ofertas,  deixavam adivinhar os contornos do perigo… Aceitar a sua ajuda,  tornar-me vassalo seu e de meu primo pelos tempos mais próximos…ou arranjar um conflito com Teresa de Leão? Buscava, de novo, o conforto das palavras de Egas, que me lembravam o exemplo de meu avô aragonês:   cordial no  trato,  mormente com aqueles que queriam derrotá-lo. Melhor pensarem que não sabia identificar a perversidade e a traição, combatendo, com o silêncio esperto, a nudez das manhãs da fraqueza humana. A companhia de Egas e dos filhos dulcificavam as minhas horas sombrias. Estavam lá quando era preciso, em companhia constante, às vezes em cavalgadas noite dentro, campos fora, até me verem anulados a dor e o constrangimento.
A meses de fazer dezasseis anos Egas e os seus homens notáveis apontavam o dia de Pentecostes, nesse Maio prenhe de sol. A tradição tem peso…Em conversa prévia com o padre de San Salvador e ajudado pela sua gente, preparava tudo para a minha investidura como cavaleiro no dia 17, bem cedo. Fazíamos constar, para minha mãe não levantar fervura, que havia festa em Bragança e precisavam de mim. Lá mesmo, na residência paçã dos braganções, um varão de confiança cortava-me um pouco os cabelos, posto o que Egas  ordenava o banho, antes da ceia. Que não precisava ficar acordado para orar a noite toda, como usavam na véspera das investiduras. Valia a pena aproveitar umas horas para dormir, antes de partirmos pela madrugada. Em direcção à catedral, dizem os livros? Não…a catedral só começaria a ser edificada uns quinze anos depois.
Teresa viera connosco até ali, obrigava a encher o bucho, horas depois, e preparava merendas, porque o caminho era longo. E aspirando o ar da manhã com meus Lourenço e Afonso Viegas, os irmãos de Egas e os servos de todos eles, lá chegávamos à igreja toda iluminada. Lourenço depunha as armas no altar, Afonso leva-me a túnica à sacristia, a cota de malha, o elmo e uma Dalmácia. Dispensava os dois últimos. Não queria empecilhos nem excesso de adornos. Depois de uma oração desajeitada vestia a cota de malha sobre a camisa de linho, outra túnica de seda escarlate,  um cinto com as armas e a fivela larga.   Ia até ao altar…benzia—me, ajoelhava. Só Deus seria o meu Senhor, só dele seria vassalo. E levantando a espada já benzida, tocava o meu ombro direito: Afonso, filho de Henrique e Teresa condes de Portugal, eu te armo cavaleiro.

O resto direi depois, desfiando mais enredos. A memória é eterna, espinha dorsal da Humanidade cravada no dorso do tempo.

* Artigo publicado na revista “9 séculos. Revista de Lusofonia”, n.º1, 2020, pags. 112/115
** A autora nasceu em Coimbra, mas vive há trinta e cinco anos no concelho de Cascais. Tem, até ao momento, vinte títulos publicados: sete de poesia, doze de ficção e um de literatura infantil, além de trabalhos académicos assinados como Helena Ventura Pereira no domínio da Sociologia da Educação e da Cultura

Afonso O Conquistador
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