Editorial

Retrato de Luís de Camões Retrato de Luís de Camões
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10 de Junho – três temas, três olhares


O 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, é o dia mais alto do calendário nacional. É alto momento que deve ser deve ser respeitado e observado por todos os portugueses.
É oportuno olhar três episódios com esses olhos, os olhos de Portugal e da grandeza da sua alma.



O 10 de Junho do xeique Munir


Neste ano, voltei, em representação da Sociedade Histórica, a estar presente no 10 de Junho dos Combatentes do Ultramar, que, há 32 anos, se realiza, na zona da Torre de Belém, junto ao respectivo Monumento, defronte do Forte do Bom Sucesso. A Direcção a que presido decidiu que a Sociedade Histórica aqui estaria sempre presente. E, há um ano, fui eu o orador convidado nestas cerimónias, encargo que muito me honrou.
Neste ano, as cerimónias decorreram integralmente nesse cenário, começando com uma missa campal – gostei da mudança dos Jerónimos para ali. Tiveram a camaradagem, a dignidade e o patriotismo que sempre as caracteriza de forma especial, por reunirem centenas de antigos combatentes que, ali, se reencontram todos os anos, num ritual de alegria e de memória – alegria e memória de ter servido. E, como nota alta, importa destacar o discurso do Coronel Comando Paulo Pipa Amorim, que é reproduzido, na íntegra, nas páginas deste número da revista “Independência”.
Porém, vivemos tempos em que há sempre quem se distraia a perturbar e a procurar estragar eventos nacionais, para ferir e fracturar, manchar o seu espírito e semear ódio. Ali, apareceram dois extremistas – sim, eram apenas dois – a lançar insultos num momento de oração, a invectivar o xeique Munir e o almirante Gouveia e Melo e a manter um ruído de agitação permanente durante cerca de 10 minutos. Soube-se mais tarde que não eram combatentes, mas gente mais nova, que já tinham estado a perturbar as cerimónias do 1.º de Dezembro, há meses, e se envolveram noutros incidentes violentos na tarde do 10 de Junho.
Acabariam por ser afastados. Mas o seu “feito” foi o facto do dia naquelas cerimónias: a comunicação social viu isso e não viu mais nada. Não viu que toda a gente ali presente repudiou os agitadores. Não viu que os dois energúmenos atingiram, em especial, as largas centenas de militares portugueses muçulmanos que, sobretudo na Guiné e em Moçambique, morreram como portugueses ao serviço de Portugal e cujos nomes estão gravados no mural edificado naquele mesmíssimo lugar. E não ouviu uma só palavra do importante discurso do Coronel Pipa Amorim. Não ouviu e não transmitiu.

Xeique Munir
Xeique Munir

O xeique Munir está ali, creio que desde sempre, por direito próprio dessas centenas de combatentes mortos e também seu direito e dever como o ministro da respectiva religião. Estava ali para rezar, assim como o capelão católico, diante do mural onde estão os nomes de milhares de combatentes que deram a vida por Portugal. Contestá-lo é ser ignorante da História de Portugal, desconhecer o que é Portugal, enxovalhar a humanidade e a memória e combatentes que deram a vida por nós.
Esta é a primeira nota deste 10 de Junho: a comunicação social diz que não gosta do extremismo, mas, em rigor, alimenta-o. Onde surge, é nele que se foca como o facto central e único.

O 10 de Junho de Lídia Jorge


Houve ainda a celeuma sobre os discursos nas cerimónias oficiais do 10 de Junho, em Lagos, em especial o da escritora Lídia Jorge, conselheira de Estado e presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do 10 de Junho. O seu discurso suscitou muitas críticas de vários sectores sociais e políticos. E a polémica ecoou na comunicação social e sobretudo pelas redes sociais. Não podiam deixar de ser reacções esperadas à abordagem que fez de um tema muito manipulado: a escravatura. Ou seja, o discurso de Lídia Jorge não representou um consenso nacional, nem era isso que pretendia; foi escrito e lido para agitar as águas, e era isso que pretendia.
Das críticas que se manifestaram, escolho dois artigos de João Pedro Marques com que inteiramente me identifico: “Considerações sobre um discurso de Lídia Jorge” (Observador, 11-junho-2025) e “Os três erros de Lídia Jorge” (Observador, 18-junho-2025). Remeto o leitor, em geral, para estes textos. São reflexões muito acertadas e rigorosas, equilibradas e certeiras, vindas de um autor que é uma autoridade na matéria – um dos nossos especialistas, muito conhecedor –, que, pelo menos desde 2017, mantém atenta intervenção pública, respondendo de modo sempre oportuno, muitas vezes sozinho, às mentiras, falsidades e manipulações que o wokismo vai semeando e propalando. Mais uma vez o fez aqui. E tem publicado vários livros (alguns, coligindo as suas crónicas; outro, textos originais), que constituem preciosa ferramenta e património precioso para fazermoa a travessia destes tempos difíceis. Graças a João Pedro Marques, só nos deixamos enganar, se quisermos. A verdade nunca prescreve.

Lídia Jorge - 10 de junho
Lídia Jorge – 10 de junho

O discurso de Lídia Jorge começa como um discurso bem escrito e bem construído, à altura do seu talento. É assim até, já perto do final, aterrar no ponto desastrado que seria o seu propósito: conotar os Descobrimentos com a escravatura, manchá-los, amolgar o prestígio de grandes figuras portuguesas (como o Infante), alardear superioridade moral sobre os portugueses de antanho, ignorar por inteiro o tempo histórico, para servir levianamente a exibição da vergonha e da condenação fora de tempo. Em resumo, a derrapagem woke, embora suavizada aqui ou ali.
Isto não se faz, sobretudo num 10 de Junho. Se entidades oficiais querem reflectir sobre o tema da escravatura (ou similares), podem fazê-lo em qualquer ocasião que não o 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas (ou similar), até em momento ad hoc e sem limites de oportunidade. Fazer como foi feito, é fora de propósito e só serve para alimentar estratégias de enxovalho.
Se a escravatura ainda existisse até aos nossos dias, podia-se compreender que o 10 de Junho fosse uma data possível para decretar, enfim, a sua abolição e redefinir a comunidade dos portugueses em base totalmente nova. Fazê-lo agora vem com enorme atraso: 250 anos de atraso, se levarmos em conta as primeiras medidas de abolição, no reinado de D. José, no século XVIII; 150 anos de atraso, se tomarmos como referência as últimas medidas impulsionadas pelo Marquês de Sá da Bandeira, no final do século XIX.
É, aliás, chocante que o discurso de Lídia Jorge ignore por inteiro a figura do Marquês de Sá Bandeira, esse grande português, político de grande dimensão, que, ao longo de décadas, contra tudo e contra todos, dedicou a sua vida pública à causa da abolição total da escravatura e do seu tráfico e a cuja porfia exemplar devemos a sua concretização. Não, não foi Lídia Jorge a pôr termo à escravatura. Não, não foram os pequenos políticos de hoje, militantes do oportunismo tardio e da falsa compaixão que terminaram com a escravatura. Não, não foram os vários wokistas de pacotilha que enxameiam alguns meios intelectuais, que acabaram com a escravatura. Foram o Marquês de Sá Bandeira e outros da sua têmpera que o fizeram, no seu tempo, enfrentando e vencendo as resistências e dificuldades e afirmando uma liderança moral que merece ser exaltada.
A realidade da escravatura é de uma dureza brutal que nos interpela, é verdade. Chega a níveis e a graus que escandalizam, é verdade. Há relatos do trabalho escravo em minas, na Antiguidade Clássica, que revoltam, é verdade. Mas tinha sido sempre assim. A escravatura era um dado de facto das sociedades antigas, cenário comum da organização social e da economia. Havia alguns de nós que caíam fora da humanidade e eram vistos como meras coisas, desprovidos de direitos e de personalidade jurídica (ou o conceito equivalente). Não conheço sociedade que os não tivesse.
Houve povos e nações com mais escravos e outros com menos, houve épocas de mais escravatura e outras de menos – mas houvera-a sempre e por todo o lado. Os escravos eram frequentemente cativos de guerras e confrontos, mas também capturados directamente para o seu comércio. Nada disto desculpa, mas contextualiza. Ninguém pode dizer que está isento de falta, nem de culpa – até ao tempo da abolição, no século XIX, em todos os países ocidentais e seus domínios, e meados do século XX, nomeadamente em países árabes mais renitentes. Isto é que merece ser conhecido e exaltado: foi preciso a escravatura cruzar-se com o Ocidente e seus valores para ser decretada a sua abolição e proibição, nos países respetivos e a título universal. Nunca isto acontecera. Nunca. No século XIX (e já no século XX para os retardatários), foi proibida em todo o lado e para sempre.
Teria ficado bem aplaudir este triunfo extraordinário, já há 150 anos. Teria ficado bem identificar e dirigir a atenção geral para as bolsas de escravidão que, hoje, contra todas as declarações de direitos e vários tratados e leis proibicionistas, ainda existem nalguns lugares e os mercados sórdidos que alimentam, vitimando em especial mulheres e crianças. Os escravos do século XIX e para trás podem passar sem a nossa compaixão. Não os de hoje! Estes, sim, exigem a nossa atenção e reclamam a nossa coragem e desassombro, porque sofrem em silêncio, incluindo o silêncio do nosso 10 de Junho.
Quem fala de escravos, calando os de hoje, faz o mesmo que criticamos aos do século XV: olhavam os escravos, sem os ver como pessoas. Foi o que se passou, no 10 de Junho, em Lagos: convocar a questão da escravatura e silenciar as bolsas onde a escravidão ainda subordina, oprime e mata nos nossos dias, é manter, hoje, a mesma condescendência que se diz condenar no passado.
Também não pode passar sem reparo a ponte feita com as narrativas que sublinham – por vezes, com erro – os números do tráfico transatlântico de escravos de África para as Américas, em que Portugal participou. Tudo, como se tivessem sido os portugueses a introduzir a captura e o tráfico de escravos em África e como se não houvesse outras eras de tráfico em tão altos números ou ainda mais altos. Choca a obstinação com que se pretende esconder o tráfico massificado que, desde cedo, na Idade Média, mercadores árabes fizeram de escravos negros para o Norte de África, a Ásia e a Europa. Os portugueses foram encontrar este tráfico em África e juntaram-se a ele, como outros europeus, servindo a pressão económica da colonização das Américas. Repito: não serve de desculpa, nem de justificação, mas é indispensável contextualizar.
Os 46 escravos dados ao Infante, como contou Lídia Jorge, citando a crónica de Zurara, foram capturados por portugueses nas costas de África, nas práticas de corso que eram frequentes na época, também nas costas do norte do Mediterrâneo e até na costa atlântica de Portugal. Mas a larguíssima maioria dos escravos comerciados por navegadores portugueses eram entregues aos portugueses por algum poderoso local ou um mercador árabe – isto é, não eram normalmente os portugueses a capturá-los. A história africana de Portugal, em diferentes costas, está cheia de episódios em que negreiros portugueses procuravam também capturar escravos para o seu comércio, mas eram mantidos à distância pelos soberanos locais, que consideravam essa tarefa exclusivo seu. Houve confrontos por esta disputa, mas os soberanos africanos procuraram sempre proteger e salvaguardar essa sua fonte de riqueza. E os mercadores árabes mantinham-se também activos na intermediação, sobretudo nas costas mais a Norte.
No ritual de expiação por que enveredou a oradora, podíamos situar a nódoa com que manchou o Infante, citando centenas, senão milhares de outros exemplos ilustres da cultura e da ciência, da política e da religião, pois essa era prática corrente na época, em diferentes partes do Mundo. Thomas Jefferson, um dos primeiros Presidentes dos EUA, político notável, principal autor da belíssima Declaração da Independência, teve centenas de escravos ao longo da sua vida – diz-se que mais de 600. E, quando morreu, tinha cerca de 130 escravos na sua célebre fazenda Monticello, na Virgínia. Visitei-a nos anos ’80. Apesar de se estar já no século XIX, e não no século XV (o do Infante), nada disso afectou a extraordinária importância da vida de Thomas Jefferson, nem os magníficos textos inspiradores que deixou aos americanos, na fundação da sua nação, e ao Mundo, numa das mais belas revoluções da História. O abolicionismo estava a chegar. Mas ainda não chegara.
Enfim, não pode deixar de notar-se que, estando-se no Dia de Camões, também poderia ter sido recordado, no 10 de Junho, que também Luís de Camões teve um escravo, frequentemente referido como Jau, que o acompanhou em Goa e em Lisboa, até à morte. E terá amado uma escrava. Ainda bem que isso não foi feito. Usá-lo, para amolgar Camões e municiar o wokismo, seria de franco mau-gosto naquele dia, naquele lugar e naquelas cerimónias.
É o que sinto exactamente quanto ao que foi dito na parte final do discurso de Lídia Jorge: franco mau-gosto, manipulação fora do contexto e serviço nefasto a agendas sem utilidade e sem valor.
Esta é a segunda nota deste 10 de Junho: o dia nacional não pode servir para dividir os portugueses, ainda por cima para cavar divisões a cavalo de meias-verdades.

O 10 de Junho de Camões amordaçado


Tenho travado diversas lutas para afirmação e em defesa do estatuto internacional da língua portuguesa, a terceira língua europeia global, a língua mais falada do hemisfério Sul, uma das línguas mais faladas do mundo, uma língua presente em todos os continentes como língua materna ou língua oficial. Uma riqueza enorme, como é bom de ver. E de entender.
Várias vezes tenho afirmado que os lusófonos europeus (os portugueses) são os lusófonos mais incompetentes do mundo. Digo-o, porque o vejo – e não me conformo. Nada fazem para defender os direitos e os interesses do português – desde logo, no seu Continente, a Europa – e, não raro, ferem a nossa língua com desleixo e, por vezes, cumplicidade. Dá ideia de que as elites reinantes no País consideram que é chique não falar em português, não escrever em português e ver outros como “grandes”, mas não nós.
Em Maio, houve o caso, que envergonha os nossos representantes, do Ministro das Relações Exteriores de Angola, Teté António, na sede das instituições europeias, em Bruxelas, ter sido barrado de poder usar a língua portuguesa numa conferência de imprensa com a Alta Representante, Kaja Kallas. De facto, não se percebe onde tinha o ministro angolano a cabeça. Como pensou poder usar o português numa organização internacional, a União Europeia, a que não pertence qualquer país de língua portuguesa?! A pergunta é uma ironia, claro. Uma pesada ironia. Na sequência do alerta de Paulo Sande, escrevi este artigo sobre o escândalo: Vergonha e enxovalho – “Português?… Não temos.” (Observador, 2-junho-2025). O leitor interessado encontra aí tudo, incluindo o vídeo que regista para a história o momento altamente constrangedor. Continua a faltar uma posição oficial de esclarecimento e garantia de que não se repetirá. Ou seja, Portugal e os portugueses com proximidade e poder querem que a vergonha continue, se repita e se consolide. Português? Jamais! (dito em francês).

Luís Camões
Luís Camões

Mas houve ainda outro caso mais grave, revelado pelo jornal “Página Um”, um jornal electrónico, independente, conhecido por descobrir factos desconhecidos – e até inimagináveis. E o que descobriu desta vez o “Página Um”?
O director Pedro Almeida Vieira escreve no Editorial de 23 de Maio: na Exposição Universal de Osaka, “o pavilhão de Portugal [da responsabilidade da AICEP] optou por apresentar-se ao mundo sem uma única mensagem em português. Nas projecções que “recebem” os visitantes, apenas se lêem mensagens em japonês e em inglês. Presumo que a palavra Portugal apareça como Portugal porque assim se escreve em inglês.” Parece impossível. Daí, o título que dá ao seu Editorial: “Portugal apaga o português na Expo 2025 Osaka: uma vergonha diplomática, um acto de ignorância desmedida”. E pode ver o vídeo promocional: Full Walk of Portugal Pavilion.
O tema rolou nas redes sociais, por onde me chegou. Não vi nenhum outro órgão de comunicação social a ocupar-se deste escândalo, nem li ou ouvi alguma autoridade a desmentir o “Página Um”, a tentar explicar os factos e a garantir que a omissão da nossa língua fosse corrigida. A Exposição Universal de Osaka começou em Abril e vai até Outubro. A atitude oficial é a habitual diante destes casos: indiferença, desmazelo, desleixo e cumplicidade.
A língua portuguesa foi no século XVI a língua veicular naqueles mares, entre as línguas orientais e as europeias. No Japão também, onde deixámos laços, registos e marcas muito lembrados e apreciados. Um tamanho desprezo pelo português nunca viria dos japoneses. Só podia vir de portugueses e do elitismo parolo infelizmente reinante. Está certo que se use o japonês, língua local. Está certo que se use o inglês, primeira língua global. Mas porquê omitir o português, a língua do dono da casa, ainda por cima também língua global e com tantas relações com o Oriente e os povos orientais?
Foi muita pena, mas sintomático, que este tema fosse omitido dos discursos do 10 de Junho, em Lagos. Devia ter sido abordado em nome de Camões, amordaçado em Osaka, no Pavilhão de Portugal. A mordaça, ainda por cima, é cara: o pavilhão custou-nos quase 26 milhões de euros. Pode ler tudo no “Página Um”, já que ninguém mais nos diz o que quer que seja.
Esta é a terceira nota deste 10 de Junho: é tempo de as autoridades e os representantes de Portugal serem exigentes e intransigentes na afirmação e no respeito do estatuto internacional da Língua Portuguesa, a língua de Camões. De uma vez por todas. É tempo de estarmos à altura de quem somos.

[Nota: a parte do Editorial relativa ao discurso de Lídia Jorge é adaptação de um artigo escrito para o jornal Observador, em vias de publicação.]