O povo sai à rua por Portugal há 600 anos *

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João Paulo Oliveira e Costa

No dia 14 de junho deste ano de 2024, em torno de Marienfeld, na Alemanha, milhares de pessoas aglomeraram-se ao longo da estrada ou junto a um hotel. Empunhavam bandeiras de Portugal, vestiam camisolas com as cores da sua selecção e até um grupo se apresentou vestido a preceito com as vestes de um rancho folclórico. A quase totalidade dessa multidão não vive em Portugal e muitos deles nem nasceram no país, mas continuam a sentir-se portugueses e, por isso, gastaram o dia para aclamar a selecção que os representa no campeonato da Europa de futebol em curso. As imagens de Marienfeld vão repetir-se nos dias dos jogos, por todo o país e em muitos núcleos de emigrantes. O povo gosta de futebol e o povo tem um profundo sentimento de portugalidade, que, em regra, ainda ganha mais força quando se vive longe do país.
Curiosamente, há 900 anos Portugal estava a ser criado por uma elite de magnates e de clérigos, que vislumbravam uma entidade própria entre os rios Minho e Mondego, embora falassem então a mesma língua dos seus vizinhos galegos. O povo que habitava o condado portucalense, tinha vínculo à sua vila ou cidade, ou ao vale ou à planura em que habitava e apenas sobrevivia; sabiam que pertenciam a um município ou que eram súbditos de um rico-homem, de um abade ou de um bispo; talvez soubessem pronunciar o nome do conde ou mesmo do rei, mas a maior parte das pessoas nunca os viu. Portugal foi, de facto, inventado por uma elite, que, em menos de dois séculos definiu o território peninsular do reino. O Tratado de Alcanizes, assinado em 1297, definiu a fronteira portuguesa e nas décadas seguintes a monarquia deu voz ao povo.
Ensina-nos a História que, em regra, as elites (sejam sociais, económicas ou mesmo intelectuais) são apátridas, e logo no início do século XIII, aquando da subida ao trono de D. Afonso II, a monarquia portuguesa esteve em risco pelo facto de muitos dos magnates que haviam servido D. Sancho I terem preferido colocar-se ao serviço do poderoso Afonso IX de Leão, em vez de porfiarem sob o frágil D. Afonso II de Portugal. Os ricos-homens do século XIV repetiram esse comportamento quando a dinastia entrou em crise, à morte de D. Fernando, em 1383. Nessa altura, porém, os antepassados dos que hoje empunham bandeiras nos estádios ou em torno de um autocarro, mostraram que a ideia de Portugal e que a vontade de ser português já animava a maioria da população do reino. Em 1295, o rei D. Dinis havia oficializado a língua portuguesa, como a escrita administrativa do reino e Alcanizes criou um facto político-linguístico sui generis, ao dar azo à formação de um estado-língua. Mais nenhuma formação política desse tempo agrupava todos os falantes de uma única língua. A prática de reunir cortes regularmente com a presença dos representantes dos concelhos contribuiu decisivamente para que vilas e cidades do reino se conhecessem e estabelecessem fortes laços de solidariedade.
Em 1383, o povo encheu as ruas de Lisboa em defesa do Mestre de Avis; sabemos que a populaça foi enganada, pois os conspiradores fizeram correr o boato de que o conde Andeiro queria matar o Mestre, quando sucedia precisamente o contrário. Assassinado o conde, D. João, mestre de Avis, foi envolvido pelo povo e escapou a qualquer tentativa de reacção de D. Leonor Teles e dos seus apaniguados. Entretanto, de norte a sul repetiam-se as manifestações de contestação à realeza de D. Beatriz e de seu marido o rei João I de Castela. Nessa época não havia redes sociais, tampouco telefones ou rádios; quer isto dizer, que as manifestações que varreram o país de lés a lés foram espontâneas e mostraram uma verdadeira vontade colectiva de não querer que o reino se tornasse numa parte de Castela. Muitos magnates perderam a vida nessas altercações porque defenderam a legalidade institucional, incapazes de perceber a vontade nacional.

O Mestre de Avis a falar ao povo na Igreja de São Domingos, em Lisboa. Pintura de Jaime Martins Barata.
O Mestre de Avis a falar ao povo na Igreja de São Domingos, em Lisboa. Pintura de Jaime Martins Barata.

A lição da crise de 1383-1385, com a demonstração de que a nação é o povo, repetiu-se noutras ocasiões, como naquela gélida madrugada de 20 de janeiro de 1554, em que o Terreiro do Paço se encheu de gente que seguia angustiada o parto da princesa, já viúva; era a continuidade dinástica que estava em causa e o nascimento de D. Sebastião foi festejado com júbilo; o mesmo Terreiro do Paço celebrou o golpe de 1 de dezembro de 1640 e aí aclamou o novo rei passados poucos dias. Tal como sucedera em 1383, neste ano de 1640 uma parte da elite portuguesa ficou em Madrid, mas os conjurados souberam interpretar a vontade do povo e arriscaram as suas vidas em busca de um destino glorioso para si, estribado numa vontade colectiva. E, de facto, a aclamação por D. João IV foi um novo momento de unidade popular em torno da ideia de Portugal. O novo rei só teve de enviar cartas a todas as localidades do país e do império e não foi preciso disparar um tiro, desde que a duquesa de Mântua foi detida e Miguel de Vasconcelos defenestrado. Não há notícia de hesitações, nem mesmo nas localidades fronteiriças que ficavam de imediato expostas aos ataques espanhóis. E se o aumento de impostos decretado por Madrid tinha levado às revoltas de 1637, o maior aumento de impostos decretado por D. João IV foi acatado pela população, que viria a suportar uma guerra de 28 anos sem fraquejar no apoio à causa independentista.
O mesmo sucedeu nos territórios ultramarinos, pois mesmo das zonas ocupadas pelos neerlandeses no Nordeste brasileiro, logo soaram vozes de apoio e de fidelidade à nova dinastia. Quando a notícia chegou a Goa, no início de setembro de 1641, o vice-rei hesitou, mas a notícia transpirou para a rua e o povo obrigou-o a proclamar a restauração da independência. A maior parte desses portugueses nunca tinham estado em Portugal e haviam nascido depois da integração do reino na monarquia dos Áustrias. Um ano depois, Macau também proclamou a nova dinastia, apesar de isso significar o rompimento com Manila, depois de terem perdido o comércio do Japão (1639), de Malaca ter sido conquistada pelos neerlandeses (1641) e de a dinastia Ming estar prestes a soçobrar sob a invasão manchu. Nesta conjuntura muito adversa, os portugueses de Macau assumiram a sua portugalidade, indiferentes a todos os riscos.
O conceito de estado-nação afirmou-se na Europa durante o século XIX, quando os velhos impérios foram perdendo capacidade agregadora e os povos que tinham mudado de senhor inúmeras vezes procuraram, finalmente afirmar politicamente as suas identidades. Portugal, contudo, tinha a sua fronteira estabilizada desde o final do século XIII e tinha percorrido a sucessão dos séculos tendo apenas um vizinho que, as mais das vezes, o respeitava mesmo que o cobiçasse. Por isso, a ideia de estado-nação formou-se em Portugal muito mais cedo do que no resto da Europa.

Levantamento do povo, na cidade do Porto, contra as tropas napoleónicas, durante as Invasões Francesas. Fresco de Severo Portela Júnior.
Levantamento do povo, na cidade do Porto, contra as tropas napoleónicas, durante as Invasões Francesas. Fresco de Severo Portela Júnior.

Tinha, aliás, voltado a manifestar-se na sua pujança, na primavera de 1808, quando todo o país se revoltou quase em simultâneo contra as forças ocupantes de Junot, o que levou o general francês a dar ordem de reagrupamento ao seu exército disperso, o que não evitou as derrotas nas batalhas de Roliça e do Vimeiro, a 17 e 21 de agosto. Passada a invasão francesa, impedida a hegemonia do Brasil, que condenava Portugal a um estatuto de dependência (na forma de um vice-reinado), Portugal não foi ameaçado na sua existência nos últimos 200 anos, período em que o mapa da Europa se fez e refez continuamente até aos nossos dias.
Talvez por isso, o sentimento pátrio parece muitas vezes esmorecido, ou mesmo como se fosse uma coisa do passado, sobretudo entre as elites endinheiradas ou bem-pensantes, que se movem em redes internacionais e que não percebem o povo. No entanto, tudo muda se a vida nos atira para fora do país; então, a saudade logo aviva a pertença e o orgulho pelas origens. E quando o desporto-rei entra em competição, o povo sai à rua, sem ter de lutar como em 1383, em 1640 ou em 1808, mas proclamando o mesmo vínculo entranhado e inexplicável de ser português.

* Artigo publicado no Observador, em 20 de Junho de 2024