Luís Sá Cunha **
Todos os grandes projectos são um segredo que se desvela nas acções que o vão consumando. Assim, o projecto de fundação de Portugal, desde o início da sua génese manifestado em pulsão num ser e num estar de ânsia, desejo e vontade de existir como espaço próprio, livre e independente. Vontade política de Reino, propriedade de Grei, sagração ontofânica de Cruz e, no tempo a vir, operação universalista de “dar novos mundos ao mundo”.
Vários estádios que se desenvolvem, inscritos num mesmo plano, consumado por espírito, vontade e sangue no decurso das duas primeiras dinastias, de Afonso Henriques a D. Sebastião, e continuado, em escatologia de reinalidade, em Camões, Vieira e Pessoa, entre outros.
Recusamos a parca, limitada, explicação causal da história, através das lentes enfumadas de positivismo ou de materialismo. Muito as desborda. Na alma e nos mitos lê-se mais. Pouco importa se o “milagre de Ourique” é acrescento tardo ao facto da batalha, registado pelos Alcobacences ou outras narrativas historiográficas. Importa ver lá uma pura e viril vontade de vivência e realização histórica que subjaz in peto ou in mente em latência numa comunidade, e que assim a incita e motiva à acção, e por moções mais fundas e mais altas. Para sabê-lo, basta ler “Os Lusíadas”, ou a “Mensagem”, onde Portugal é. A história escreve-se de trás para a frente, mas lê-se da frente para trás.
Antes de Portugal, onde andam a sua vis e a sua alma?
Tudo começa a germinar no Condado Portucalense, herdado por Afonso VI de Leão e Castela a sua filha ilegítima D. Teresa infanta de Leão, por casamento com o nobre borgonhês D. Henrique de Borgonha, e que são os pais de D. Afonso Henriques. Mas o jovem condado sente as fragilidades da sua existência, intensamente pressionado entre as ambições integracionistas de Leão, a oeste, e da Galiza, a norte.
A morte de D. Henrique deixa o filho com três anos e D. Teresa sucessora do Condado, que logo se vê em pugna com a sua irmã leonesa, Urraca, pelo estatuto de herdeira de D. Afonso VI. D. Teresa guerreou para o interior, alcançou poder em êxitos militares, intitulou-se Rainha de Portugal, assim reconhecida por Afonso VII, seu sobrinho que, à morte de Urraca, retoma o título do seu avô como imperador de toda a História. O Condado Portucalense é, neste momento, vassalo de Afonso VII.
D. Teresa rege com garra e vontade política o Condado, mas é enredada nos fortes envolvimentos político-religiosos galegos; a disputa já se evidenciava entre o bispo D. Diego Gelmirez, poderoso bispo de S. Tiago de Compostela, e D. Geraldo, bispo bracarense, para alçar Braga a sede metropolitana com domínio sobre as dioceses de Porto, Coimbra, Viseu e Lamego. Eram também manifestas vontades autonomistas dos senhores e barões portucalenses, que tinham sido incentivadas já por D. Henrique.
Sob forte influência do seu Aio Egas Moniz, o jovem Afonso Henriques, com onze anos é integrado na corte de sua mãe, mas sempre fidelizado às ambições de autonomia portucalense, contra as mais directas investidas galegas, pelos braços político e religioso. Mas a mais funda vontade do jovem herdeiro do Condado era autonomizar-se da Galiza, como de Leão e Castela, ou seja, da vassalagem a Afonso VII. Criar um reino independente.
D. Teresa queria verdadeiramente impor-se cabeça do condado portucalense, ousando mesmo alçar-se a rainha de Portugal (“Ego Taresia de Portugal regis Ildefonsis filia”). Mas vê-se crescentemente envolvida pelas pressões galegas, via da infiltração dos grão senhores Bermudo Peres de Trava e Fernão Peres de Trava, manipulados pelo pai Pedro Froilaz de Trava, em conluio com o arcebispo de Santiago de Compostela, centro religioso de enorme voltagem e carisma em toda a Ibéria e mais além Pirenéus. As ambições de Compostela eram tais, que almejavam tornar-se o centro do Catolicismo, destronando Roma. O mentor do jovem Afonso Henriques começa a ser arredado de funções políticas importantes (governos de Coimbra e Lamego) logo passadas para as mãos dos Trava. Fernão de Trava vai surgindo como príncipe consorte.
A operação galega começava a tornar-se clara entre a nobre classe portucalense. Talvez Teresa, por ambição, fosse embaía à crença de reinar num reino galaico-portucalense. Um sentimento de revolta estremece os nobres portucalenses. Pressente-se na sombra o dedo de Egas Moniz, no desenredar das malhas galegas, em coligação com o arcebispo de Braga, Paio Mendes que, compelido a abandonar o território condal, se retira até Zamora levando o Infante que, na catedral, se auto-armou cavaleiro (1125). D. Egas Moniz é neste cenário o pólo resistente, líder da elite político-militar duriense, dos ricos-homens ou infanções, os nobilitados por nascimento de entre Cávado e Douro. Era o símbolo vivo e militante da autonomia portucalense dentro da geopolítica da Ibéria.
As peças começam a ser lançadas no tabuleiro do decisivo confronto armado. Confrontada a vontade e projecto autonomista portucalense com três frentes, a galaico-leonesa, a castelhana (soberania imperial de Afonso VII) e o esparso poderio almorávida, os estrategos portucalenses optam pela regra da concentração dos meios para resolver a ameaça norte. Proclamada a revolta pelo Infante, as duas forças enfrentam-se perto do castelo de Guimarães, com triunfo das tropas de Henrique na famosa batalha de S. Mamede, que se continuou no desarme de outros focos opositores.
Nela têm preponderância militar as forças de Egas Moniz, que acorre no momento exacto em reforço das hostes de Afonso Henriques. A primeira frente estava vencida. Como ficou registado em crónicas, S. Mamede foi a “primeira tarde portuguesa”.
Arquitectura de um reino
Com a rectaguarda tranquilizada com a destruição do abraço de urso galaico-composteliano, Afonso toma uma decisão de inteligente e decisiva estratégia: transmuda-se, coma corte dos seus mais fiéis, para Coimbra. Aqui começa a germinar um corpus de nacionalidade, um embrião de estado, a aliança secular-religiosa unida no combate autonómico, o aparelhamento de corpo militar de elite. O projecto estratégico começa a revelar-se: ir ao assalto da frente sul, derrotando o poder mourisco. Junta agora o governo do condado portucalense ao de Coimbra, numa posição mais central para operações a nordeste e a sul. Mas, para tal, era necessário cimentar a unidade interna.
Assim, a mudança visava também a libertação de soft power galaico, pesadamente comprovado com os Trava, mas também de infanções portucalenses, alguns deles bons aliados seus em S. Mamede, mas que iam ganhando crescentes ambições de poder para ombrear na liderança do novo reino. A situação era gelatinosa: em S. Mamede Afonso tem apoio de alguns nobres galegos, que visavam contrabalançar o solidário poderio das cinco linhagens durienses agora ladeadas por Afonso, as de Ribadouro, da Maia, Sousa, Baião e Bragança, que tinham dominado em tempos do seu pai.
Do cimo da alta, vê o Mondego ali em baixo que é muralha natural de defesa para sul; funda e patrocina o Mosteiro de Santa Cruz, escola de gentes de pensamento para as tarefas do estado, como S. Teotónio ou João Peculiar, que já liderara a resistência a Compostela. Organiza os célebres “cavaleiros de Coimbra”, um novo corpo militar com preparação para actuações em operações, quer de táctica clássica quer especiais, como em fossados, os golpes-de-mão assim então denominados. As bases mouriscas já estão na ordem de batalha…Inicia a operação diplomática junto de Roma, visando autonomizar a Igreja portucalense e o reconhecimento do Condado como Reino autónomo.
Entra de novo na Galiza para neutralizar as ambições de Peres de Trava, que vence em Cerneja. Faz com seu primo, Rei de Leão, a paz em Tui. Lá de cima (1131/1134), D. Afonso observa um deslaçamento do espaço geo-militar sarraceno que ia decorrendo nesse período. E terá projectado uma acção militar, início de conquista do sul. Ourique.
Os mistérios de Ourique
Talvez por ter sido um dos mais misteriosos acontecimentos da história portuguesa, a batalha de Ourique a marcou fundacional e vocacionalmente. Do nevoeiro se gera o mito que, em definição de Fernando Pessoa “é o nada que é tudo”, ou seja, sendo pura representação e sonho, origina e nutre o devir histórico.
Nas crónicas, tudo sobre ela é vago, nebuloso, inconcreto, diverso. Onde foi, quais as forças, que tipo de acção militar. Sobre isto, nimbada de uma aparição milagrosa de Cristo crucificado a D. Afonso, garantindo-lhe a vitória, que iniciada na historiografia de Duarte Galvão, foi sendo orquestrada noutros relatos historiográficos. Interpretados como manipulações de sustentação política da monarquia portuguesa exemplificados no processo de exaltação de D. Manuel, como antes no processo de legitimação do Mestre da Aviz ao trono e mais tarde à legitimação de D. João IV, o milagre de Ourique resultou, afinal, mais poderoso como causa histórica do que muitos outros factores em concorrência. Sempre nutriente das acções de autonomia de Portugal e, mais do que isso, foi poderosamente incitante de ingente empresa universal de Portugal. O futuro já lá germinava.
Antecipando algumas considerações finais, pensamos oportuna a citação que Lima de Freitas faz de Gilbert Durand, de texto inédito, intitulado “Tradition et l´Age d´Or et criativité Portugaise (Nova Deli, 1987): “Portugal, ao contrário de todas as outras nações europeias, que iriam contentar-se com o sonho da Idade do Ouro e do regresso de Saturno, aplicaria toda a sua criatividade profunda na tentativa incansável de realizar, na Cidade como na sensibilidade do seu génio poético, esse Quinto Império que a aparição profética de Cristo a Afonso Henriques, o fundador borgonhês da Primeira Dinastia antes da decisiva batalha de Ourique, iria pôr para todo o sempre em enxergue à alma portuguesa: “Eu sou o edificador e o dispensador dos Impérios…Eu quero em ti e nos teus descendentes estabelecer o meu próprio Império”.
Situemo-nos no momento histórico. O mais importante, de certo, foram as consequências da batalha, isso importa sobremaneira.
Não é lógico que os exércitos se tenham defrontado já em começos de além-Tejo, porque repugna à mais prudente visão militar ir adentrar-se em território sujeito a envolvimentos mais do que prováveis e fatais por unidades militares sarracenas. O terreno do enfrentamento teria que estar antes de Santarém, base de apoio adversária, para lançamento de investidas até Leiria, ameaçando Coimbra. Ourique, em restrita operação táctica militar, teria sido a preparação e limpeza de terreno para a tomada daquela base de apoio sarracena, ponto estratégico cujo domínio permitiria as sequentes operações para sul até Lisboa. E teria que ter correspondido ao corte de uma linha de ligação e reforço de unidades guerreiras mouriscas em toda a zona centro do território português. Teve que ter sido uma forte vitória militar, pelas fortes consequências reais e psicológicas, incitantes para as hostes lusas, mas desmobilizadoras para os derrotados.
E, milagre, aconteceu. Mas o milagre foi o de uma adunação gratificante, quando na manhã da batalha todos os infanções e senhores terão alçado D. Henrique sobre o pavês consagratório e, em uníssono, o aclamaram Dux, primus inter pares, chefe unânime para um país independente, que iria proclamar o império de Cristo em todo o Reino vencendo Mafoma. Esta irrupção de união e exaltação espiritual foi sem dúvida um factor de contágio que estremeceu todas as chefias e cavaleiros e vilãos, e os fez entrar no campo da batalha com uma arremetida imparável. Parece normal? Não, porque acontecer unanimidade é coisa rara, ferverosa ainda menos, e estamos então numa sociedade retalhada de senhorios de parcelas de terra, onde o estado poroso e distante era apenas uma parcela maior, numa ordem feudal onde cada senhor rivalizava com os outros, ambicionava a suserania, traía alianças como caminho para triunfar e garantir o seu pessoal domínio. O contrário de aunante moção pátrida.
Na manhã de Ourique outro milagre aconteceu: o de Portugal, ao inverso de toda a restante Europa, não ter tido feudalismo, cujo germe ali foi também aniquilado. Como afirmou o Conde de Kaeserling (conferência em Lisboa, 1930), Portugal era o único corpo simples da Europa. E, miraculosamente, essa unidade estava inscrita no adn luso, para garantir um projecto longo de séculos, sempre continuado por dinastias, monarcas e ordens e instituições seculares e religiosas, sem contestação nem desistência. Na alma, Portugal tinha um destino impartilhável, dessincronizado do continente, porque polarizado em outra constelação maior. Todos os outros tiveram feudalismo, Portugal não; Portugal teve revolução tecnológica em que se adiantou 70 anos ao resto da Europa, e que lhe permitiu partir pelos mares para todo o mundo, e a Europa não; a Europa teve revolução industrial, Portugal não; Portugal teve uma tentativa revolucionária de implantação de um regime comunista, e a restante Europa demo-liberal ficou calmamente a assistir. Portugal atrasa-se e adianta-se à Europa. Porque não tem alma europeia, grávida de telurismo continental. Tem alma líquida, marítima, o rosto focado no continente mar—oceânico e no infinito dos mundos. O coração relojoeiro luso bate a descompasso, porque é “todo o mundo a sós” (Fernando Pessoa). Maior que a Europa. Nos “Lusíadas”, apenas uma vez os portugueses vão lá dentro, a Inglaterra, com os doze Magriços, mas para pôr em relevo a superioridade dos cavaleiros lusos sobre os demais na realização superior do ideal da cavalaria espiritual, guarda de Graal. Fernando Pessoa derrama a maior diatribe contra tudo o que é Europa, políticos e escritores e poetas mais consagrados do seu tempo, mas no Cais das Colunas,“ de frente para o Tejo e de costas viradas para a Europa”. Sempre que somos grandes somos maiores do que a Europa, porque universais. Grandes, fomos “um dos nomes de Deus”, Agostinho da Silva dixit. Quem como nós? Nada há nisto de exaltação nacionalitarista mas, apenas, de doloroso lamento ante a “noite vil” de espectros a esbracejar no escuro, assanhados na destruição e blasfemização de toda a grandeza que fomos. “O nosso passado, aí tendes o que nós somos. Não há outra forma de julgar as pessoas” (Oscar Wilde). Na decadência, ostracizar a grandeza é tão só o despejo da impotência invejosa.
Sim, Ourique foi pedra de toque fundacional de Portugal.
“O peito às armas feito” – os Templários
Na sua execução territorial, a construção de um espaço próprio independente foi sobretudo um projecto de estratégia e acção militar vitoriosos. Afonso Henriques revela-se um lúcido estratego. Ourique era também preparação para Santarém. Esta operação já estava no plano de Afonso, que o teria confidenciado a dois dos seus mais fiéis partidários nos campos do Arnado, na outra margem do Mondego.
Ali, por certo, seria a esplanada de treino dos “corpos especiais”, onde se distinguiam os “cavaleiros de Coimbra”, cuja raiz possivelmente germinou até à Ala dos namorados de Aljubarrota.
A conquista do castelo da Santarém foi uma “operação especial” do tipo golpe-de-mão chamada nesses tempos “fossado”. O rei terá partido de Coimbra com um séquito de cavaleiros. No dia seguinte junta-se-lhe em Soure um corpo de guerra de cavaleiros templários, encabeçados pelo mestre Hugo Martoniensis. Terão feito a aproximação a Santarém de noite, espiado os movimentos da fortaleza e forjado a acção da presúria, que deverá ter sido feita em noite de Lua coberta. Um pequeno grupo sobe de surpresa por escadas às muralhas, aniquila as vigias e abre o portão por onde entram os, talvez, duzentos cavaleiros comandados por Afonso Henriques e o Mestre templário. De manhã, a fortaleza é cristã. Os templários libertam doze cavaleiros seus que ali estavam prisioneiros.
É uma típica operação de “tropa especial”, mas nos confrontos de campo aberto também estes corpos de cavaleiros tinham um papel especial, nas investidas para fender a ordem das formações inimigas. De seguida é Lisboa que está na mira, depois de mais uma vistoria afonsina em Sacavém, contra forças sarracenas em maior número. Lisboa é tomada no mesmo ano. E, em seguida, depois de muitos confrontos armados, a conquista e posse de quase todo o território herdado até hoje.
Em toda esta saga, é mister revelar a Ordem do Templo, na sua função de ordenação e exploração agrícola da terra, mas maiormente na sua da defesa e conquista. Templários e Cistercienses são uma criação de S. Bernardo, que tiveram papel determinante na criação de Portugal. Bernardo de Claraval deve ser consagrado o patrono espiritual de Portugal, ele a mais proeminente figura da Igreja do seu tempo, guia de Dante na escalada ao Paraíso. Oriundo da nobreza borgonhesa, tia-avô de D. Henrique, cria 60 conventos, promove Inocêncio II e Alexandre III à cátedra papal (importantes para o reconhecimento do reino), visiona um projecto de conhecimento e unidade do mundo. Por seu irmão bastardo Pedro Afonso, o jovem Rei envia a Claraval uma “tença” de 400 maravedis de ouro, que se prolongará por cem anos. O Portugal de Afonso Henriques alicerça-se na aliança entre o projecto de independência da nobreza portucalense que encabeça e o ideal templário de teologia mística e milícia guerreira para o império universal da Cristificação pelo Amor.
O cavaleiro templário é o mais temido nos cenários de guerra. Combatendo pelos mais altos ideais, ele já deu a vida antes de entrar em cena. Derramará todo o sangue antes de tombar. Deles diz o abade de Claraval, seu criador e inspirador: “(…) vão e vêm a um sinal do seu comandante; usam os trajes que lhes dão, não procurando nem outros trajes nem alimentação. Desconfiam de todo o excesso, desejando apenas o necessário. Vivem todos juntos, sem mulheres nem crianças…quando não comem o seu pão dando graças a Deus, ocupam-se a remendar os seus trajes e os seus arreios rasgados ou despedaçados (…)”. Vida quotidiana ascética e dura, marcada por vários momentos de oração, jejuns, abstinência de carne três vezes por semana, cuidar de cavalos, exercitar-se para o manejo das armas. Vive sob votos de pobreza, castidade, obediência e piedade. Montado, a sua arma de ataque é uma lança de cerca de 6 metros que ao impulso do cavalo causa efeito devastador na sua frente. Descartáveis, podendo partir-se na carga, o cavaleiro tinha o recurso da espada de armas, para combate a cavalo e desmontado no caso de ferimento do animal. E, sobretudo, o templário era possesso de um fervor espiritual que o arremetia sobre o inimigo em ímpeto devastador. Tinha um ideal de uma causa.
Os Templários já estão em Portugal no tempo de D. Teresa, em 1129, e na confirmação da doação de Soure, logo depois da batalha de S. Mamede, verifica-se que Afonso Henriques já era confrade da Ordem: “(…esta doacção faço, não por mando de alguém, mas por amor de Deus, (…) e pelo cordial amor que vos tenho, e porque em vossa irmandade e em todas as vossas obras sou Irmão. Eu o Infante D. Afonso com a minha própria mão roboro esta carta”. Os Templários estão com ele em S. Mamede, em Ourique, em Santarém. Gualdim Pais, futuro Mestre da Ordem, já morava no paço do infante D. Afonso aos 12 anos; era sobrinho de Paio Mendes arcebispo de Braga; aprende o ofício das armas, segue com o Infante para Coimbra e estuda no Mosteiro de Santa Cruz, combate destemidamente em Ourique, onde é armado cavaleiro pelo Infante vencedor.
“Triste de quem fica em casa…”
Este serviço e vocação da Ordem continuou, transposto para a Ordem de Cristo em que se tornou com D. Dinis, e sendo um dos factores essenciais em todo o projecto português dos Descobrimentos, que levou a todas as partes do mundo a mensagem e o carisma do direito divino contidas nas palavras de Cristo em Ourique: levar a Cruz a todos os continentes, trazer o Oriente para o Ocidente e levar o Ocidente ao Oriente com a África de permeio, casar as trocas do espírito com as do sangue em comunidades multirraciais, ser factor de uma escatologia de fraternidade universal. Fazer unidade do mundo diverso. Império que não é utopia, nem ucronia, mas Reino, porque real no tempo, já visionado no Canto IX dos “Lusíadas”.
Para tanto, em séculos, os portugueses se feriram em milhentas batalhas onde derramaram o seu sangue por todas as terras de orbe. Onde as suas armas quase sempre triunfaram, e onde deixaram testemunhos vivos dessa interculturação de espírito e genes, em África, Brasil, Índia, China (Macau), Indonésia. As suas Forças Armadas pode4m exibir um álbum dos mais ilustres feitos na história dos povos.
Restam-nos, hoje, dessa estirpe antiga, os Comandos, por cujo esforço, com outros muitos também, se venceu uma guerra que todos os especialistas mundiais consideravam imbatível e nunca ganha: a guerra de Angola estava, total e definitivamente, ganha. Muito, pela visão táctica do seu criador, Coronel Gilberto Santos e Castro, e pela preparação e sacrifício de todo o Comando. O 25 de Abril tem como causa próxima esta enorme vitória. No dia 25 de Novembro, só nos Comandos pôde ser pedida outra vitória de Portugal. Porque, como nos tempos antigos, não existe profissionalismo, há fidelização colectiva a um ideal e a um serviço.
Um tempo e um país onde se pretendo criar um Museu da Escravatura erigida “exemplar” feito da História, onde se intenta rasurar o nome de tantos combatentes de África, onde se ostracizam os nomes de António V eira e de Camões, se denigrem os Comandos e a História, e despromovem e humilham as Forças Armadas, é um país penduram de um galho seco e cabeça para baixo. Não sabe que são os lugares da (boa) memória que seivam o futuro. Não sabe mineirar nos Lusíadas a fonte vivificante de Portugal. Vagabundeia na noite o Louco de Junqueiro.
Portugueses, conquistámos a terra, vencemos o mar, falta conquistar o Céu. Um grupo de novos cavaleiros persegue a mesma mitosofia da História, mas ignorada por um país (não) real.
“Portugal é uma potência que urge passar a acto” (Álvaro Ribeiro). Quem o fará?
* Artigo publicado na revista “9 séculos. Revista de Lusofonia”, n.º1, 2020, pags.32/37.
** Luís Sá Cunha é ex-oficial miliciano Comando (Guiné) radicado em Macau, onde se tem dedicado à investigação da História e Cultura locais.