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Sernancelhe Foral 900 anos 2024 Sernancelhe Foral 900 anos 2024
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Paulo Almeida Fernandes *

A 26 de outubro de 1124, Egas Gondesendes e seus filhos, entre os quais João Viegas “Ranha”, passaram foral a Sernancelhe. O documento é importante por vários motivos (nacionais, regionais e locais) e tem sido salientado sobretudo como a primeira carta de foral outorgada por um agente laico na história portuguesa (REIS, 2002: 61).
A ação aparentemente inusitada deste nobre insere-se num período fundador da autonomia concelhia no ocidente peninsular. Durante a vigência do Condado Portucalense (1096-1128), os titulares do poder fizeram uso dos forais para obter diferentes resultados: atração e fixação de povoamento; estruturação de unidades tendencialmente urbanas de homens livres e reforço da defesa do território, através da construção de fortificações e da criação de milícias concelhias lideradas por grupos locais de cavalaria-vilã.
A dimensão militar implícita (por vezes explícita) nos forais condais pode surpreender, mas ela foi encarada, pelo menos no tempo do conde D. Henrique, como uma opção face às fragilidades demonstradas pelos exércitos portucalenses na frente meridional. Numa análise diacronicamente mais longa, a intencional dimensão militar dos concelhos ajudou a diversificar as fontes de financiamento e de recrutamento das forças que compunham os reinos cristãos peninsulares, o que explica, em parte, o sucesso destas formações políticas nas guerras travadas contra almorávidas e almóadas nos séculos XI a XIII.

Os forais condais e os seus limitados efeitos


O foral de Sernancelhe insere-se na fase terminal do Condado Portucalense, numa altura em que o antagonismo entre as princesas de Leão era inultrapassável e a rainha D. Teresa estabelecera uma aliança com nobres galegos, no sentido de constituir um bloco ocidental equiparável militarmente a Leão. Mas o diploma surge também na evidente continuidade da política foraleira encetada pelo conde D. Henrique, no sentido de fortalecer demograficamente a Beira Alta e de criar aí unidades de povoamento, militarmente estáveis de defesa (MARQUES, 1996: 23).
O recurso a forais como elementos geradores de municípios caracteriza parte da organização defensiva do período condal. Na verdade, caracteriza sobretudo a política de D. Henrique, sendo a atenção concedida à dimensão concelhia uma linha de ação considerada inovadora e equilibradora face ao natural protagonismo da nobreza e do clero dentro das fronteiras do condado (COELHO, 2000: 42 e 45-46). Apesar das limitações demonstradas pelos forais como instrumentos também de vocação militar, é um facto que 25% da documentação preservada desse período foi dirigida precisamente aos concelhos, o que prova o interesse de D. Henrique em fortalecer a rede municipal do território (COELHO, 1996: 567). Desta linha de atuação conhecem-se oito forais, três deles destinados a terras da Beira Alta.
Durante o governo de D. Teresa, o ritmo de concessão de forais foi diferente. Conhecem-se quatro diplomas outorgados pela rainha, mas todos em datas tardias do seu governo e sem aparente relação entre si. Permanece a dúvida sobre um quinto foral, passado a Soure após os dramáticos acontecimentos de 1116 e 1117 e anterior à doação da vila a Fernão Peres de Trava, em 1122 (PIMENTA, 2019: 29).
Esta atuação foi distinta da concertação de forais registada no tempo de D. Henrique. Mesmo o argumento de reforço fronteiriço enunciado em alguns desses documentos – em concreto no de Tavares (datado possivelmente de 1111), onde se menciona expressamente que o território se situava «in stremo», entre cristãos e muçulmanos –, não parece ter sido suficiente para que a política foraleira inaugurada pelo conde tivesse continuidade por parte de D. Teresa. Por outro lado, foi também nesta fase que outros agentes, religiosos e laicos, se envolveram na concessão de forais, alargando assim as estratégias de atração de povoamento em benefício de lógicas regionais e privadas, sem aparente ligação com a estratégia real.
O mais importante conjunto de forais outorgados por D. Henrique foi determinado pela perda de Santarém, em 1111. Data exatamente desse ano a concessão de cartas a Coimbra, Soure e Sátão, devendo corresponder também a esse contexto os forais de Azurara da Beira e Tavares. Sobre estes últimos, não se conhecem as datas exatas dos diplomas, mas tem-se argumentado que a sua concessão não se dissocia dos acontecimentos de 1111 (COELHO, 2000: 45).

Mapa dos forais outorgados durante o período condal (1096-1128). A verde, forais do conde D. Henrique: 1 - Guimarães (1096); 2 - Constantim de Panóias (1096); 3 – Tentúgal (1108); 4 – Coimbra (1111); 5 – Soure (1111); 6 – Sátão (1111); 7 – Azurara da Beira (prov. 1111); 8 – Tavares (c. 1111?). A laranja, forais da rainha D. Teresa: 9 – São Martinho de Mouros (1121), 10 – Viseu (1123); 11 – Ponte de Lima (1125); 12 – Ferreira de Aves (1126). A azul, forais privados outorgados durante o período condal: 13 – Santa Comba São (1102); 14 – Treixedo (1102); 15 – Arganil (1104); 16 – Porto (1123); 17 – Sernancelhe (1124).
Mapa dos forais outorgados durante o período condal (1096-1128). A verde, forais do conde D. Henrique: 1 – Guimarães (1096); 2 – Constantim de Panóias (1096); 3 – Tentúgal (1108); 4 – Coimbra (1111); 5 – Soure (1111); 6 – Sátão (1111); 7 – Azurara da Beira (prov. 1111); 8 – Tavares (c. 1111?). A laranja, forais da rainha D. Teresa: 9 – São Martinho de Mouros (1121), 10 – Viseu (1123); 11 – Ponte de Lima (1125); 12 – Ferreira de Aves (1126). A azul, forais privados outorgados durante o período condal: 13 – Santa Comba São (1102); 14 – Treixedo (1102); 15 – Arganil (1104); 16 – Porto (1123); 17 – Sernancelhe (1124).

As cartas de Coimbra e de Soure, juntamente com o foral passado a Tentúgal, em 1108, pretenderam garantir alguma segurança na linha do Mondego, entretanto exposta como fronteira face aos almorávidas. Relativamente a Soure, o diploma estabelecia uma repartição de tarefas sobre a defesa: o conde deveria assegurar a defesa do castelo, enquanto a cavalaria-vilã local promoveria a defesa das populações (PIMENTA, 2019: 26).
O caso de Coimbra é mais complexo, uma vez que a cidade passava por um processo de tensão social, de contornos políticos e religiosos. No primeiro caso, pela instalação de uma elite formada por cavaleiros francos, fiéis a D. Henrique, em detrimento do grupo autóctone de origem moçárabe, liderado por Martim Moniz, genro do alvazil D. Sesnando (NOGUEIRA e MAGALHÃES, 2008: 48-49). No segundo caso, a progressiva substituição da liturgia hispânica, longamente observada pelas comunidades moçárabes, pela liturgia romana, alinhada com as determinações do Concílio de Burgos, celebrado em 1080 (ROSA, 2000: 439). O foral de Coimbra, passado no próprio dia em que Santarém caiu em mãos almorávidas, pretendia alcançar um autêntico «tratado de paz» (SOARES, ed. 1989: 109) entre poderes conflituantes da urbe, um esforço de pacificação que garantisse uma eficaz defesa face à ameaça muçulmana.
O reforço da terra beirã, em Tavares e Azurara, aspirava à defesa do Alto Mondego, assim prevenindo eventuais incursões pela Serra da Estrela e o acesso a Coimbra por Nordeste. Já o foral de Sátão, a norte do rio Dão, foi concedido pelo conde como testemunho da hospitalidade que as comunidades daquele território haviam demonstrado durante a estadia do governante (e do seu exército), a caminho da malsucedida campanha de Santarém. É possível que parte dos homens de Sátão aos quais o foral se dirigiu fossem conterrâneos de D. Henrique. No ano anterior, o próprio conde havia concedido cinco casais em Vila Boa a Bernardo Franco (com probabilidade um francês, segundo COELHO, 2000: 44), em troca de um bom cavalo que este havia alcançado em terra de muçulmanos. Outros francos surgiram também em terras beirãs, como Rabaldo, importante homem na administração de Coimbra até à concessão do foral de 1111. Possivelmente afastado do governo da cidade na sequência daquele diploma (que vedava aos estrangeiros o exercício do poder na gestão da urbe), terá transferido a sua estratégia de ação para a zona de Lafões, onde os seus filhos aparecem documentados nas décadas seguintes (VENTURA, 2003: 91-92).
A constituição de um concelho significava a emergência de um marco estável no território e a criação de uma milícia municipal, composta por cavaleiros e peões recrutados entre os habitantes. No entanto, estas forças militarizadas, lideradas pelas cavalarias vilãs locais, por mais numerosas e bem organizadas, estavam longe de ser suficientes para combater eficazmente os almorávidas.
Tal fragilidade ficou patente em 1116 e 1117, quando o curso terminal do Mondego foi parcialmente destruído e Coimbra cercada por tropas do emirato. A defesa da cidade foi organizada pela própria rainha (e seus aliados galegos) e a vitória teve várias consequências, para além da manutenção do território em torno do Mondego. Pela primeira vez, o Papa reconheceu o estatuto régio de D. Teresa, o que implicitamente arrastava a autonomia de Portugal face a Leão. Também pela primeira vez, a defesa da fronteira meridional do condado (e parte considerável da sua gestão) passaram a estar na posse dos aliados galegos de D. Teresa, em concreto Fernão Peres de Trava.
O incêndio provocado pelos habitantes de Soure antes de fugirem do ataque muçulmano, em 1116 (BARROCA, 1997-98: 173 e 183-84), e o cerco a Coimbra de 1117 evidenciaram a desadequação dos forais para efeitos militares. Aqueles acontecimentos revelaram, também, a escassez de recursos militares para «sustentar (…) um “projecto” que se pretendia de dimensão régia», como concluíram AMARAL e BARROCA, 2012: 194. Haveria que encontrar outras soluções, que só se vislumbraram com a chegada dos Templários a Portugal, em inícios de 1128. Sintomaticamente, a primeira doação recebida por estar ordem foi a vila de Soure, localidade mais frágil da linha do Mondego, até pela circunstância de a sua fortificação – constituída a partir do possível antigo paço de D. Sesnando e do vizinho mosteiro, documentado desde 1043 (FERNANDES e REAL, 2020: 136) – se situar em terreno baixo e na confluência de dois rios.

Sernancelhe e os forais privados do Condado Portucalense


Uma das maiores originalidades do período condal foi a existência de forais privados, religiosos e laicos. Tem-se assumido que os cinco diplomas que compõem este grupo integraram uma ação concertada com a orientação do casal condal, que viu assim complementadas as suas estratégias com diplomas análogos por parte de outros poderes atuantes sobre o território. Apesar da proximidade conceptual e textual entre cartas condais e privadas, estes últimos agentes parecem ter visto os forais como instrumentos de reforço das suas próprias políticas, não se revelando uma relação direta com os benefícios outorgados pelos condes. Parecem ser mais o testemunho do sucesso relativo do foral enquanto ferramenta de organização dos territórios do que ações declinadas da política condal.
Dos cinco forais privados conhecidos, dois foram outorgados por bispos, outros dois pelo prior de um mosteiro e somente um por um grande senhor da nobreza.
Em 1102, o prior do mosteiro de Lorvão passou carta de foral a Santa Comba Dão e Treixedo, duas localidades nos limites setentrionais do seu domínio. Apesar de serem apenas os dois forais conhecidos do cenóbio laurbanense nesta época, inserem-se numa política expansionista do mosteiro verificada entre as décadas finais do século XI e as primeiras da centúria seguinte. Sob o impulso de Eugénio, prior entre 1085 e 1118, o mosteiro aderiu à regra de São Bento, readquiriu numerosas propriedades entretanto dispersas e beneficiou da proximidade do casal condal, de quem recebeu metade da povoação de Cacia, em 1106 (BORGES, 2002, vol. I: 83). Os forais a Santa Comba Dão e a Treixedo emularam a ação foraleira do conde D. Henrique, fazendo o mosteiro uso de idênticos instrumentos de fixação de povoamento.
Em 1114, o bispo de Coimbra concedeu carta de foral a Arganil. Apesar de ser o único documento com estas características passado pelo prelado conimbricense neste contexto, insere-se numa política ativa por parte do titular da diocese em expandir a sua autoridade para o interior do território, ao longo do rio Alva, na vertente setentrional da Serra do Açor. Poucos anos depois, ultrapassada a crise de 1116-1117, a rainha D. Teresa concedeu o castelo de Coja ao prelado de Coimbra, que já tinha outras povoações na zona, entre as quais Lourosa (MATTOSO, 1976: 147). Numa região que interessou progressivamente às instituições régia e monásticas, a Sé de Coimbra foi pioneira na organização da terra e dos homens.
Em 1123, o bispo do Porto D. Hugo concedeu foral aos habitantes do burgo ribeirinho. Ao contrário da rural e periférica Arganil, o Porto era a póvoa urbana e comercial central da diocese portuense. Pela primeira vez, um alto dignitário da Igreja (não por acaso francês e um dos principais colaboradores do arcebispo Diego Gelmírez, de Compostela) ditava as regras de convivência e de fiscalidade nos limites da “sua” cidade. D. Hugo, que havia recebido o território urbano das mãos de D. Teresa, negociou a redação final do diploma com os homens bons da cidade. Como argumentou António Matos Reis, o exemplo deve ter sido o foral de Compostela passado por Gelmírez em 1113, a partir do foro de Sahagún, ainda do século XI (REIS, s.d.: 5-6).
Chegamos, finalmente, ao foral de Sernancelhe, assinado por Egas Gondesendes de Baião, alcaide da vila. Nos imprecisos limites do Condado Portucalense, Sernancelhe localizava-se numa linha de fronteira nascente algo difusa, um território escassamente povoado e ainda distante das unidades de povoamento mais estáveis do reino de Leão.

Mapa do Condado Portucalense em 1121. Fonte: Soares, ed. 1989, adaptado por Amaral e Barroca, 2012: 211.
Mapa do Condado Portucalense em 1121. Fonte: Soares, ed. 1989, adaptado por Amaral e Barroca, 2012: 211.

Egas Gondesendes (também grafado como Gosendes), o segundo deste nome, era filho de um não documentado Gondesendo Viegas e neto de Egas Gondesendes (RODRIGUES, 2018: 54). Foi mordomo-mor da rainha, cargo no qual aparece documentado em 1116, embora pudesse desempenhar essas funções desde o dramático ano de 1111, data em que figura como confirmante dos forais de Soure e Sátão. Foi o único membro da família Baião a desempenhar tão altas funções. Dispôs também de um conjunto apreciável de tenências: Arouca (1098-1100); Baião (1110-1128, apesar de ter o seu comando desde o final do século XI); Lamego (1100); Penaguião (1127); Sanfins (1110) e São Salvador e Tendais (1109) (dados em AMARAL e BARROCA, 2012. 346-352). Esta lista evidencia uma efetiva presença em três áreas nevrálgicas do reino – Trás-os-Montes e Norte e Sul do Douro – e uma progressão pela atual Beira Alta, a qual pode ter sido complementada com o estatuto de alcaide, como foi o caso de Sernancelhe. Manteve-se fiel a D. Teresa até à primavera de 1128, tendo passado a apoiar D. Afonso Henriques pouco antes da Batalha de São Mamede (MATTOSO, 1978: 168), travada no verão desse mesmo ano.
O foral de Sernancelhe foi passado por este nobre, juntamente com os seus filhos, sendo expressamente identificado João Viegas, o Ranha, destacado membro da família e apoiante de Afonso Henriques (RODRIGUES, 2018: 54). A preocupação em mencionar os descendentes parece corresponder a uma intenção de gestão hereditária, o que transforma Egas Gondesendes em não só o alcaide de Sernancelhe, mas sim o seu senhor.

Árvore genealógica da família de Egas Gondesendes
Fonte: Sottomayor-Pizarro, 2014: 75
Árvore genealógica da família de Egas Gondesendes Fonte: Sottomayor-Pizarro, 2014: 75

Por que razão estas terras da Beira e não outras?


Aparentemente, todas as terras beirãs objeto de carta de foral tinham vestígios de povoamento anterior. Nem todas parecem ter tido estruturas militares prévias, mas as que não dispunham da proteção de antigos muros, situavam-se em pontos estratégicos do território.
O foral de Tavares foi dirigido a uma comunidade fortificada num castelo (um castro), situado na fronteira da Beira, imediatamente antes da Serra da Estrela. Por seu turno, a localidade de Azurara (atual cidade de Mangualde) detinha também um castelo, mencionado em 1103, numa doação à Sé de Coimbra por parte de Pedro Sesnandes, sobrinho de D. Sesnando (LP, ed. 1999: 243, doc. 151; ALVES, 1990: 11). O envolvimento da família do alvazil de Coimbra na segunda metade do século XI e a existência de um mosteiro dedicado a São Julião, situado nas proximidades da fortaleza de Azurara, são indicadores que certificam a relevância estratégica da região ainda antes da constituição do Condado Portucalense. A individualidade desta zona demonstra-se também por, naquele ano de 1103, a localidade ser mencionada como um territorio (uma Terra, segundo interpretação de MARQUES, 2000: 119). Ainda se conservam restos da fortaleza altomedieval em torno do santuário de Nossa Senhora do Castelo, compostos por alinhamentos de muros nos quais se reaproveitaram silhares almofadados e que definem uma estrutura retangular ainda não explorada arqueologicamente (NÓBREGA, 2004: 22; MARQUES, 2000: 120).
Sátão parece ser um caso de maior complexidade. Na localidade, não restam vestígios de uma fortaleza, ainda que o local dos Santos Idos já tenha sido apontado como ponto fortificado (SOUSA, 1991: 107). No próprio foral reconhece-se o povoamento recente daquele território, ao estipular que «Zaatam fuit populata per suam cartam de foro» (aspeto salientado por FERNANDES, 2006: 11). É ainda provável que, naqueles finais do século XI, o município de Sátão não se circunscrevesse a um lugar concreto, mas sim a uma área polinucleada (como sugeriu VALE, 1976: 263-264). Nas proximidades, subsistem restos de estruturas fortificadas em Silvã de Cima, Senhora do Barrocal e em Ferreira de Aves. Esta última localidade foi também agraciada com foral. O diploma não identifica qualquer estrutura militar (MARQUES, 2000: 116), embora se admita a existência de uma fortaleza pré-românica rudimentar, uma possível torre de vigia, à qual estariam associados diversos entalhes nos penedos para construções em madeira (VIEIRA, 2009: 105) e fragmentos cerâmicos. Permanece também a hipótese de o mosteiro de Santa Eufémia (das Donas), em Ferreira de Aves, ter sido fundado em época condal, por Soeiro Viegas, um dos confirmantes do foral de 1126 (RIBEIRO, 1995: 9).
A norte, Viseu e São Martinho de Mouros apresentam testemunhos inequívocos de anterior relevância estratégica. Foi às portas de Viseu que Afonso V faleceu, na década de 20 do século XI, tentando conquistar a cidade, então fortemente defendida por uma guarnição. E sobre São Martinho de Mouros, o próprio foral outorgado por D. Teresa indica que a localidade tinha sido já alvo de uma carta de povoamento, passada pelo rei Fernando Magno, a qual não chegou aos nossos dias. Ainda hoje subsistem elementos da fortificação no castro da Mogueira.
A sul, onde o mosteiro de Lorvão interveio em 1102, o foral de Santa Comba Dão menciona a existência de uma torre (FERREIRA, 2005: 31). Sobre Treixedo, as informações são menos esclarecedoras. Francisco Ferreira referiu-se à importância militar do castrum trenium já no tempo de Afonso Henriques (FERREIRA, 2005: 101-102), mas a zona devia ter outras marcas simbólicas de assinalável importância como o espaço religioso onde se fez sepultar o conde conimbricense Gonçalo Moniz, que um documento de 981 identifica como Treixedelina (PMH, DC: 80, doc. 130). O microtopónimo não se identifica na atualidade, mas não deveria localizar-se longe do mosteiro de Treixedo, assim se explicando a sintonia toponímica entre ambos os lugares (FERNANDES, 2017: 371-372).
Esta explicação não exclui uma outra, óbvia: nem todos os antigos núcleos de povoamento associados a antigas fortificações foram objeto de foral. Na fronteira oriental da Beira Alta, por exemplo, só uma fortaleza foi objeto deste tipo de diploma: Sernancelhe. Todas as antigas estruturas militares mencionadas desde o século X na região estiveram à margem deste processo. Este núcleo, composto pelos castelos de Trancoso, Moreira de Rei, Sernancelhe (grafado como seniorzelli), Longroiva, Penedono, Ranhados, Muxagata, Numão e Meda ou Almendra, é particularmente importante, porque integrou o património do mosteiro de Guimarães em 960, por doação de D. Chamôa Rodrigues, sobrinha da condessa de Portucale Mumadona (PMH, DC: 50-51, doc. 81). Século e meio depois dessa doação, não se identificam aparentes movimentações para integrar, restaurar e desenvolver esta relevante linha defensiva.
O fenómeno de não integração de antigas estruturas militares regista-se também em áreas interiores do condado, tanto a Norte como a Sul do rio Douro e mesmo em Trás-os-Montes, onde é flagrante, por exemplo, a falta de dados relativos a Chaves, verdadeira cidade na fronteira setentrional.

Sernancelhe antes do foral de 1124


A 26 de outubro de 2024, o município de Sernancelhe comemorou os 900 anos do foral de Egas Gondesendes. A data tem sido entendida como o momento fundador da vila, embora diga mais respeito à constituição do concelho e da sua relativa autonomia municipal em tempos medievais. Para encontrar as origens do aglomerado populacional há que recuar ainda mais, pelo menos até finais do século IX.
Como se viu, Sernancelhe surge mencionada em documentação do ano 960, altura em que um núcleo de povoamento já se havia constituído à sombra de uma fortaleza. É possível recuar esse momento criador até à instalação de um grupo específico asturiano no atual centro de Portugal, composto pelo príncipe rebelde Bermudo Ordonhes (irmão desavindo do rei Afonso III das Astúrias) e por vários nobres da sua pequena corte, entre os quais os irmãos Diogo, Ero e Godesteu Fernandes (REAL, 2005; REAL, 2013; FERNANDES, 2019). Este clã foi continuado por vários descendentes destes três nobres e por outros membros da nobreza, entretanto recrutados em áreas estrategicamente relevantes do reino asturiano por meio de estratégias matrimoniais. Exemplo disso é o facto de D. Chamôa Rodrigues, que em 960 detinha numerosos castelos, penelas e povoações na Beira Alta, ser neta de Diogo Fernandes e filha de Rodrigo Tedones, este último descendente de Afonso Betotes, presor de Tui em 854. Deve-se a este grupo um processo colonizador regional de grande escala, atuante sobre um triângulo genericamente compreendido entre Águeda, Numão e Lorvão, do qual ainda restam abundantes vestígios materiais.
No roteiro da progressão asturiana pela Beira Alta, Sernancelhe destaca-se pela qualidade dos materiais ainda preservados. No interior da igreja matriz, subsiste um capitel vegetalista tipicamente asturiano, reaproveitado como pia de água benta.

Capitel asturiano preservado no interior da igreja matriz de Sernancelhe.
Capitel asturiano preservado no interior da igreja matriz de Sernancelhe.

Realizado no duro granito da região e apesar de bastante mutilado, organizava-se em três registos (o superior com desaparecidas volutas) e era uma cópia fiel de capitéis calcários aplicados em construções áulicas de Oviedo, em concreto no palácio de Santa Maria de Naranco e na igreja de São Miguel de Lillo, construções datadas de meados do século IX. Este capitel tem sido localmente interpretado como obra visigótica (AZEVEDO, 2012: 30), mas a comparação com idênticas produções asturianas não deixa dúvidas sobre uma mesma cronologia. Associada à igreja, identificou-se ainda parte do cemitério alto-medieval, constituído por sepulturas escavadas na rocha (algumas parcialmente destruíads pela construção da igreja românica) e, pelo menos, uma sepultura em estola (BARROCA, 1990-91: 95-96).
O que resta do castelo de Sernancelhe preserva também importantes vestígios deste período (valorizados por BARROCA, 2000: 217).

Castelo de Sernancelhe. Aspeto parcial de um alinhamento de muros.
Castelo de Sernancelhe. Aspeto parcial de um alinhamento de muros.

Um paramento da muralha é composto por «aparelho não-isódomo, com rolhas, cunhas e silhares almofadados», obedecendo a uma técnica construtiva pré-românica. O alinhamento dos muros define um perímetro irregular, tendencialmente oval. No seu interior, os afloramentos rochosos revelam sinais de aplainamentos para receber habitações e estruturas de madeira. Do lado nascente deste recinto, subsiste uma segunda plataforma onde se recolheu cerâmica alto-medieval, possivelmente associada ao primitivo núcleo de povoamento sernancelhense, a qual aguarda por uma exploração arqueológica.

Conclusão


Em 1024, um grande nobre da família Baião lançou as bases do municipalismo em Sernancelhe. 900 anos depois, o princípio de autonomia municipal mantém-se como principal força motriz deste território e das suas comunidades. A história mudou muito em nove séculos, mas há dimensões da aventura portuguesa que parecem ser fios condutores ininterruptos da narrativa histórica do país. O municipalismo é uma dessas dimensões transtemporais, que faz com que poderes autárquicos vigentes na atual 3.ª República se reconheçam como herdeiros de diplomas produzidos no longínquo período de formação de Portugal. Conhecer a história do foral de Sernancelhe e evocar os documentos fundadores dos municípios portugueses favorece a compreensão sobre as origens do país que somos.

Bibliografia


Fontes documentais impressas
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– RODRIGUES, Manuel Augusto, coord. edit., 1999 – Livro Preto da Sé de Coimbra. Coimbra: Arquivo da Universidade de Coimbra.

Estudos
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– AZEVEDO, Cândido, 2012 – Igreja românica de Sernancelhe. Sernancelhe: Câmara Municipal de Sernancelhe.
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* Instituto de História da Arte da NOVA FCSH.