A Passarola

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João José Brandão Ferreira

«Diz o licenciado Bartolomeu Lourenço que elle tem descoberto um instrumento para andar pelo ar da mesma sorte que pela terra e pelo mar, com muito mais brevidade, fazendo-se muitas vezes duzentas e mais léguas de caminho por dia, nos quaes instrumentos se poderão levar os avisos de mais importância aos exércitos, no que interessa a V.M. muito mais que todos os outros príncipes, pela maior distância dos seus domínios evitando-se desta sorte os desgovernos das conquistas, que provêm em grande parte de chegar tarde as notícias delles; allem do que poderá V.M. mandar vir todo o preciso dellas mais brevemente, a mais seguro; poderão os homens de negócio passar letras e cabedaes a todas as praças; poderão ser socorridos tanto de gente como de víveres, e munições y a todo o tempo; e tirarem-se dellas as pessoas que quiserem, sem que o inimigo possa impedir. Descobrir-se-ão as regiões mais vizinhas aos polos do mundo, tendo a nação portugueza a glória deste descobrimento, além das infinitas conveniências que mostrará o tempo…».

Bartolomeu de Gusmão
Bartolomeu de Gusmão

Foi deste modo, que o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão requereu, em princípios de 1709, a el-rei D. João V, a apresentação do seu invento.
Gusmão nasceu em Santos, Brasil, presumivelmente em fins de 1685, dado ter sido baptizado em 19 de Dezembro desse ano. Era filho de Francisco Lourenço e de D. Maria Alvarez e irmão de um notável político e diplomata do seu tempo, Alexandre de Gusmão. Educado no seu seminário de Belém (Baía), pertencente à Companhia de Jesus, desde cedo revelou interesse pelas ciências experimentais e espírito inventivo. A observação da natureza cativava-o. O voo das aves faz despertar nele o sonho de criar uma «passarola» que pudesse levar os homens a voar.
Em 1701, deixou a Companhia e veio à Metrópole, onde foram notados o seu engenho e prodigiosa memória. Regressou ao Brasil e ordenou-se, mas o seu espírito inventivo dominava-o e foi assim que inventou e pôs em prática, no Seminário de Belém, um processo «para fazer subir a água a toda a distância a que, se quiser levar».
Voltou a Portugal em 1708, tendo-se matriculado na Faculdade de Cânones de Coimbra, mas interrompeu o curso, certamente por via dos estudos e experiências em que se achava envolvido. Ajudava-o o Marquês de Fontes. Os seus trabalhos rapidamente ficaram conhecidos e causaram sensação. O autor passou a ser conhecido pelo «voador» e objecto de troça por parte dos versejadores da época. O interesse pela «máquina» era, no entanto, grande, até no estrangeiro. A gravura da passarola apareceu nessa altura, mas sabe-se hoje tratar-se de uma mistificação do próprio Gusmão a fim de desviar atenção de curiosos e oportunistas.
Data desta altura o requerimento, que o rei aceita a 19 de Abril de 1709. A primeira experiência realizou-se a 5 de Agosto, desse ano perante a Corte.
As fontes da época não nos elucidam completamente de como seria a «máquina», mas presume-se tratar-se de um balão com ar aquecido, a julgar pelas experiências realizadas. O padre Gusmão não apresentou todavia, o seu invento em tamanho natural, mas sim uma amostra. O inventor tentou então fazer subir, numa Sala do Palácio um globo de papel que tinha sob a abertura uma pequena barquinha com um foco ígneo, mas o balão ardeu sem voar.
A segunda experiência, feita no dia 7 ou 8, resultou: o novo balão elevou-se cerca de quatro metros e cinquenta centímetros até ao tecto da sala. Finalmente, a 3 de Outubro um outro «instrumento de voar» foi lançado na parte da Casa da Índia elevando-se a «bastante altura».
Tinha-se acabado de inventar um aeróstato rudimentar. Não se sabe ao certo porque é que as experiências não continuaram, mas podem ter sido consideradas um fracasso pois os resultados ficaram aquém do enunciado pelo jovem Sacerdote.
Lourenço de Gusmão não se deixou abater e continuou as suas pesquisas científicas, tendo logo no ano seguinte publicado um opúsculo sobre «Vários Modos de esgotar sem Gente as Naus que Fazem Água». Em 1713, partiu para a Holanda em busca de melhores condições para realizar experiências e sempre com o sonho de voar. Esta tentativa não surtiu efeito e Gusmão voltou a Portugal, em 1716, dedicando-se ao interrompido curso universitário que terminou em 1720. Gozava então de prestígio como pregador e homem de letras pelo que ao ser fundada a Academia Portuguesa da História, foi nomeado académico. D. João V continuou a protegê-lo e a estimá-lo. Tendo-o feito fidalgo Capelão da Casa Real, colocou-o na Secretaria do Estado e concedeu-lhe importantes rendimentos no Brasil. Encarregado pela Academia de escrever a história do bispado do Porto, investigou o assunto e apresentou as suas conclusões em sessões académicas. Os inventos técnicos não desmereceram a sua atenção. Quis fazer «carvão de lama e mato» e descobriu uma «máquina ou modo de moer» destinada a aumentar o rendimento dos moinhos hidráulicos e engenhos de açúcar. Este invento foi reconhecido pelo próprio Rei em 1724, com a outorga de um privilégio.
De repente, a 26 de Setembro de 1724, Bartolomeu de Gusmão foge para Espanha em companhia de seu irmão, Frei João Alvares de Santa Maria. Esta fuga deveu-se à perseguição da Inquisição por alegada participação numa história de bruxaria. Escritos de seu irmão, revelam mais tarde, que tinha aderido ao Judaísmo desde 1722. Durante a fuga adoeceu vindo a morrer em Toledo a 18 ou 19 de Novembro de 1724, reconciliado com a Igreja Católica após graves delírios.
Manteve até ao fim a esperança de continuar a máquina de voar, cujas vantagens relativas à navegação aérea ele tão bem soube apontar no requerimento feito ao Rei. E também eventuais consequências negativas foram por ele reconhecidas: «e porque deste invento se podem surgir muitas desordens. Cometendo-se com o uso muitos crimes, e facilitando-se muitos na confiança de se poderem passar a outro reino …» E por isso ele pretendia evitar estes malefícios querendo que Portugal possuísse o monopólio do seu uso.
Foi pena, que o Estado Português na altura e a sociedade em geral, não se tivesse empenhado mais a fundo em ajudar o notável padre na construção de semelhante invento. Mas podemos, hoje em dia, mais do que temos feito, defender os nossos pergaminhos, como percursores da aerostação e inscrever, internacionalmente, Bartolomeu de Gusmão na galeria a que tem direito.
Faz este ano 300 anos que faleceu. Os seus restos mortais deviam regressar à Pátria.

* Oficial Piloto Aviador (Ref.)