Forais da Fundação, Municípios de Portugal
O artigo com mais relevância e actualidade que publicamos neste número da revista INDEPENDÊNCIA é o artigo do Prof. Paulo Almeida Fernandes “Há 900 anos, em Sernancelhe”. Não nos fala só do foral de Sernancelhe, que festejou 900 anos em 26 de Outubro passado, em cerimónia municipal onde participei, representando a Sociedade Histórica. Mas expõe também o encadeado coerente de vários forais outorgados nesses anos imediatamente anteriores à fundação do Reino de Portugal, que, concentrados sobretudo na região de Coimbra e na linha do Mondego, vão marcando e balizando o território de Portugal e tecendo a sua coesão. Esta região constituía, nesse tempo, a fronteira Sul do Condado Portucalense, estando sujeita à pressão dos almorávidas.
Escreve Paulo Almeida Fernandes: “A constituição de um concelho significava a emergência de um marco estável no território e a criação de uma milícia municipal, composta por cavaleiros e peões recrutados entre os habitantes. No entanto, estas forças militarizadas, lideradas pelas cavalarias vilãs locais, por mais numerosas e bem organizadas, estavam longe de ser suficientes para combater eficazmente os almorávidas.”
Os forais, definindo e constituindo os concelhos, são instrumentos fundamentais da organização do território português, desde o início do Reino e mesmo anteriormente, no Condado Portucalense, sob governo do Conde D. Henrique, da Condessa-Rainha D. Teresa e de D. Afonso Henriques ainda no período condal. E são instrumentos definidores da relação comunitária dentro dos vários concelhos e, bem assim, dos laços estreitos e directos entre estes e o governante supremo. Dizendo de outro modo, foram instrumentos relevantes para a formação do sentimento de comunidade e a organização da sua presença no território do Reino, à medida que se foi alargando.
É também Paulo Almeida Fernandes que remata: “900 anos depois, o princípio de autonomia municipal mantém-se como principal força motriz deste território e das suas comunidades. A história mudou muito em nove séculos, mas há dimensões da aventura portuguesa que parecem ser fios condutores ininterruptos da narrativa histórica do país. O municipalismo é uma dessas dimensões transtemporais, que faz com que poderes autárquicos vigentes na atual 3.ª República se reconheçam como herdeiros de diplomas produzidos no longínquo período de formação de Portugal. Conhecer a história do foral de Sernancelhe e evocar os documentos fundadores dos municípios portugueses favorece a compreensão sobre as origens do país que somos.”
É por isto que, dentro da programação PORTUGAL 900 ANOS, concebemos o subprojecto FORAIS DA FUNDAÇÃO, MUNICÍPIOS DE PORTUGAL, dirigido a assinalar, destacar e festejar os específicos 900 anos dos forais dos respectivos municípios e a evidenciar o contributo de cada um nos 900 anos de Portugal.
Assim como se diz que “a família é a célula-base da sociedade”, gosto de dizer que o concelho ou município é a célula-base do território. Historicamente é o que ressalta dos forais outorgados por sucessivos reis (ou condes, no período ainda do Condado), de que os forais afonsinos foram apenas os primeiros de centenas de outros. Não seríamos como somos hoje, não fora esse precioso instrumento de governo régio e de autonomia local. Por isso, neste tempo dos 900 anos de Portugal, não é de mais comemorar os mais antigos de todos eles, os primeiros forais portugueses de entre todos.
Pelos estudos que fizemos, identificámos 60 forais outorgados entre 1096 e 1185, ou seja, desde a recriação do Condado Portucalense liderado por D. Henrique e D. Teresa até à morte do nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques. Estes forais pertencem, hoje, a 53 municípios.
O propósito do nosso projecto é que a comemoração dos 900 anos de cada foral não se esfume, depois de comemorado, como se fosse assunto de menor importância. Ou que cada comemoração não passe totalmente despercebida no plano nacional, por virtude do péssimo hábito da centralização crescente dos conteúdos noticiosos. Isso só se conseguirá se se construir forte e visível espírito de corpo entre todos os municípios abrangidos no que, por exemplo, podíamos alcunhar de “A Liga dos 900”. E só será possível se, pelo menos, todos os municípios abrangidos (ou uma significativa maioria) assumirem a condução deste nosso projecto e desenvolverem todas as suas virtualidades.
Os anos já passados mostram bem essa necessidade. Só começámos com esta ideia em 2023, mas os forais começaram a festejar 900 anos em 1996. Guimarães festejou 900 anos do seu foral em 1996? É possível que sim. Mas, honestamente, não dei por isso; e, 28 anos depois, é facto enterrado no passado, ninguém se lembrando deste facto da maior importância. Em 2011, Coimbra festejou os 900 anos do seu foral? Sei que organizou um ano de comemorações; mas, 13 anos passados, é assunto enterrado, ninguém o valorizando. Em 2023, assinalaram-se 900 anos dos forais de Viseu e do Porto. Enquanto Viseu desenvolveu um programa variado e magnífico que se prolongou por seis meses, a cidade do Porto fez uma celebração portas adentro sem visibilidade pública. E, passado apenas um ano, do Porto nada constou e a memória de Viseu vai-se esfumando. Neste ano, o caso de Sernancelhe mostra a tragédia do interior: por mais que faça, ninguém sabe. O programa municipal foi digno, interessante e variado, tendo mesmo incluído uma emissão filatélica comemorativa, que foi lançada na sessão, mas não ultrapassou as fronteiras do concelho. O mesmo podemos dizer dos outros forais que já viveram os seus 900 anos, entre 1996 e 2023: Constantim de Panóias (Vila Real), Azurara da Beira (Mangualde), Sátão, Soure, Tavares (Mangualde), Arganil e São Martinho de Mouros (Resende) – ou nada foi feito, ou pouco ou nada se soube e o seu título nonicentenário logo caiu no esquecimento.
Não pode ser! Não podemos consentir que factos tão importantes nas raízes mais fortes de Portugal não sejam devidamente valorizados, exaltados, cultivados. Essa é a função cultural e a utilidade cívica, social e política do projecto que concebemos para aprofundar e elevar o significado do programa PORTUGAL 900 ANOS. Mas só os próprios municípios poderão fazê-lo. Esperemos que, a 4 de Março de 2025, quando irão celebrar-se os 900 anos do foral da garbosa Ponte de Lima, a acção dos FORAIS DA FUNDAÇÃO, MUNICÍPIOS DE PORTUGAL já esteja em pleno desenvolvimento e falando em voz alta. Portugal precisa muito dessa força que vem da base. Os 900 anos também.